Mulheres amam homens, que amam outros homens, que amam...
O que acontece quando um homem, em vez de amar o feminino como algo "fora" dele, decide amar e viver o feminino em si ou consigo mesmo?
Por Sara Wagner York
Rio de Janeiro - RJ - No universo das relações e identidades, há uma ideia que tem ganhado força e gerado discussões importantes: a de que somos ensinados a amar de formas bem diferentes dependendo do nosso gênero. Enquanto garotos são incentivados a amar coisas como poder, esportes e sucesso, garotas são, muitas vezes, socializadas para amar os garotos. Mas e quando essa regra não se aplica? O que acontece quando um homem, em vez de amar o feminino como algo "fora" dele, decide amar e viver o feminino em si ou consigo mesmo?
Essa é a questão central de uma conversa complicada que explora um ponto de vista intrigante: se um homem (aquele que, com sua genitália, parece contrariar teorias da construção social) decide abraçar o feminino como parte de sua própria identidade, ele acaba gerando um tipo de "curto-circuito" tanto no campo pessoal quanto no social. A sociedade, e até mesmo algumas teorias clássicas, poderiam descrever esse homem como "feminino demais". No meu caso, eu sempre fui a menina que sou, mas há quem acredite que eu tenha sido "socializada como homem" (coisa que aprendi aos quase 40 anos - se homem é força e poder, e gritar e falar grosso e ser o centro do mundo, também aprendi a ser homem, mas aos quase 50 anos). No entanto, a conversa fica quente quando sugere que é exatamente nesse espaço que encontramos a figura da mulher não branca: a travesti, a lésbica, a trans e até o último terço do século passado, as negras (!), e é aí que o amor social muitas vezes falha, de um jeito surpreendente, inclusive por parte de muitas mulheres. Parece que para ser mulher é preciso ser a cara metade ou a métrica perfeita que algumas religiões patriarcalistas pregam: a costela - ou alguma derivação cis-masculinista, nunca a originalidade!
Amor e gênero: uma disparidade afetiva
A ideia é que existe uma dissimetria afetiva: mulheres são ensinadas a ver o amor por homens como um projeto de vida, enquanto homens são socializados para serem mais "auto-suficientes" e amar o mundo de forma mais egocêntrica. Mas o que acontece com quem não segue esse roteiro?
Quando um homem, que foi criado para buscar poder e autoafirmação, decide amar e incorporar o feminino, ele questiona as bases dessa socialização. O feminino deixa de ser algo a ser conquistado ou desejado "do lado de fora" para se tornar um modo de ser e existir. É nesse ponto de ruptura que a travestilidade e a transfeminilidade surgem como um abalo para o que pensamos sobre gênero e desejo.
Travestilidade e o desafio às antigas teorias
Muitas das teorias mais tradicionais sobre a mente humana sempre tiveram dificuldade em entender o que não se encaixa nas caixinhas pré-definidas. A travestilidade, por exemplo, não é vista como uma "falta" ou um "erro", mas sim como uma afirmação poderosa. Quem transita ou se identifica com o feminino rompe com a ideia de que o desejo é sempre direcionado a algo que falta. Para eles:
- Não buscam algo que lhes falta para se sentirem completos
- Não aceitam que as diferenças biológicas sejam o destino final de sua identidade
- Mais importante: não apenas desejam o feminino, mas o personificam.
Essa atitude é considerada uma "heresia" para uma sociedade que ensina as mulheres a amar os homens, mas nunca ensina os homens a amar o feminino como algo que eles próprios podem viver e expressar.
A educação sexual no século XXI: um vácuo perigoso
No passado, quando se tratava da educação sexual informal dos filhos homens, havia rituais e espaços, ainda que problemáticos, que marcavam essa transição. Casas de prostituição, revistinhas pornográficas e, mais tarde, vídeos em cassete ou no cinema, eram parte desse "aprendizado" velado. Não que acreditássemos que essa era a forma ideal, muito pelo contrário. Mas e hoje? Em um cenário onde a conversa sobre sexo dentro de casa ainda é um tabu, como nossos jovens estão aprendendo sobre o tema?
Sem um diálogo aberto e uma educação sexual séria e didática, o que resta para a maioria dos adolescentes são os vídeos da internet, muitas vezes repletos de fetiches, apelos a padrões irreais de beleza e performance, a fetichização de genitálias e a infantilização do corpo feminino. Onde estão as discussões sobre consentimento, diversidade sexual, prazer mútuo, respeito e as complexidades das relações humanas?
É um contrassenso exigir maturidade e responsabilidade de jovens que estão aprendendo sobre um dos aspectos mais fundamentais da vida humana em segredo, em grupos, consumindo conteúdo muitas vezes distorcido e sem a mediação de adultos. Precisamos urgentemente de um processo educacional que seja mais pragmático que intuitivo, que dialogue com a realidade digital e que prepare nossos jovens para relações mais saudáveis e conscientes. Não podemos nos dar ao luxo de deixar que a desinformação e o silêncio preencham um espaço tão vital para o desenvolvimento humano.
A expulsão da travestilidade do feminino
Um ponto delicado levantado pela tese é a razão pela qual muitas mulheres, incluindo algumas feministas, acabam rejeitando, silenciando ou até competindo com mulheres trans e travestis. A explicação estaria na ameaça simbólica que essas figuras representam.
Elas mostram, através de suas próprias vidas e corpos, que o feminino é uma construção social - ou seja, algo que pode ser uma escolha, uma criação, uma jornada. Isso pode ser desafiador para mulheres que talvez acreditem que sua própria identidade feminina é definida apenas pela opressão ou pela biologia. Nesse sentido, a mulher trans ou travesti seria uma figura "impossível" para elas: alguém que escolhe (mesmo em meio a muita dificuldade e violência) ser aquilo que muitas foram ensinadas a, talvez, não gostar em si mesmas.
O patriarcado, em um nível inconsciente, se incomoda com essa revelação. E, infelizmente, muitas mulheres podem acabar internalizando esse incômodo, praticando uma sororidade seletiva, onde o feminino "legítimo" precisa ser marcado pela dor, pela biologia do útero e por certas experiências que foram desenhadas por homens outrora, ou você acredita que a maternidade e desejo de cuidar são natos? Para a maternidade recomendo Vera Iaconelli e para o segundo Gayle Rubin.
A subordinação: o legado das religiões patriarcais
Para entender a fundo por que o feminino "legítimo" é tão rigidamente definido, precisamos olhar para as bases de nossa cultura. As grandes religiões monoteístas patriarcais - judaísmo, cristianismo e islamismo - compartilham estruturas simbólicas e narrativas que colocam o masculino como centro, origem e autoridade da criação, da lei e da ordem. Aqui estão exemplos emblemáticos que reforçam essa lógica da subordinação da mulher ao homem, a partir da ideia de que ela deriva dele ou lhe deve obediência:
1. Judaísmo (Torá / Antigo Testamento)
- Criação de Eva da costela de Adão (Gênesis 2:22): a mulher é literalmente derivada do homem. Essa narrativa é central para justificar a "ordem" da submissão feminina
- Leis da pureza e impureza (Levítico 15, 18): a menstruação da mulher é vista como impura, reforçando o corpo feminino como deficitário ou perigoso
- Função reprodutiva: a mulher é valorizada principalmente como mãe - não como sujeito pleno. Vide a esterilidade como maldição (Sara, Rebeca, Raquel).
2. Cristianismo
- Continuação da lógica judaica com agravamento moral:
- Eva como responsável pelo pecado original (Gênesis 3): ela é quem desobedece primeiro e leva Adão junto. Isso funda uma visão da mulher como mais suscetível ao erro e sexualmente tentadora
- Cartas de Paulo (1 Timóteo 2:12–14): "Não permito que a mulher ensine, nem que tenha autoridade sobre o homem; esteja, porém, em silêncio
- A mulher como corpo para o marido (Efésios 5:22–24): "As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor."
3. Islamismo
- Criação da mulher a partir do homem: embora o Alcorão não traga literalmente a costela, o Hadith Sahih Muslim 1467 diz: "a mulher foi criada da costela do homem"
- O homem como protetor e superior (Alcorão 4:34): "Os homens são os protetores e mantenedores das mulheres porque Allah os fez superiores a elas"
- Regras de vestimenta, comportamento e obediência são fortemente impostas às mulheres, responsabilizando-as pela moralidade social.
Elementos comuns nas três religiões:
- O homem é imagem direta de Deus; a mulher é derivada
- A mulher é responsável pela tentação e desordem moral (do corpo ao pecado)
- A linguagem divina é masculinizada: Deus é "Pai", "Senhor", "Rei"
- O poder espiritual e institucional (sacerdócio, autoridade) é quase exclusivamente masculino.
Outros exemplos além das religiões abraâmicas:
Embora politeísta, o hinduísmo tradicional também carrega traços patriarcais (ex: Manu Smriti diz que a mulher nunca deve ser independente - sempre sob o pai, o marido ou o filho).
No zoroastrismo, a mulher também ocupa um papel secundário na cosmologia e nas leis.
Críticas feministas e dissidentes:
Teólogas como Mary Daly, Ivone Gebara, Rita Nakashima Brock, Ana Ester e Amina Wadud problematizam essas narrativas, propondo leituras críticas, simbólicas e reconstruções éticas que não partam da inferiorização ou da demonização da mulher.
O preço de amar o feminino em si
Uma observação forte: se as mulheres são ensinadas a amar os homens, e os homens a amar o mundo, aqueles que decidem amar e viver o feminino dentro de si - e não como um objeto externo - acabam sendo expulsos de ambos os universos.
Do mundo masculino, eles são vistos como "traidores da virilidade". Do mundo feminino, podem ser considerados "impostores da dor" ou de uma identidade que não é a deles. Algumas leituras do texto "Conto da Aia" de Margareth Atwood até sugerem que as mulheres sem útero de Gilead seriam na verdade mulheres trans e para seu desejo inequívoco de família e amor aos seus homens, usariam as mulheres com útero (ignorando solenemente que homens trans também tem útero).
Essa exclusão da travestilidade como uma forma legítima de humanidade só pode ser realmente entendida quando se analisa como a sociedade constrói o que é "masculino" e "feminino", e como a cisgeneridade (a ideia de que gênero e sexo biológico devem sempre ser alinhados) tenta monopolizar o que significa ser mulher ou homem. Uma monocultura que exclui e destrói quaisquer formas de vida que não sejam da natureza assertiva de Deus: pênis-homem e vulva-mulher. E como eu disse, o deus assertivo que tudo sabe e nunca erra, desapareceu com a ajuda humana com os Intersexo!
Quanta inocência, não!?
Em outras palavras, abraçar o feminino para além das expectativas sociais é um ato poderoso, mas que, infelizmente, ainda encontra muita resistência. E é um convite para pensarmos: o que precisamos mudar em nós e na sociedade para que o amor e a identidade possam florescer em todas as suas formas?
A obsessão por tornar todos iguais nunca foi um projeto de justiça, mas de controle. Fascistas, nazistas e autoritários não temem o caos - temem a diferença. Por isso tentam uniformizar corpos, desejos e ideias.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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