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Sara York

Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.

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Mercado da alma: fé e outras drogas

A espiritualidade contemporânea está se tornando um novo campo de consumo

Evento ocorre entre dias 18.a 27 de junho no Teatro de Contêiner Mungunzá, em São Paulo-SP. Dep. Pastor Henrique Vieira, Sara York e Cidinha da Silva participam da mesa 9 no dia 26

Fé no Feed, Cura no Skincare: Quando o Mercado da Alma (Anima) Altera Consciências (e Bolsos). De rituais xamânicos a cosméticos ungidos, passando pela patologização das drogas, a sociedade busca transcendência. Mas qual é o verdadeiro propósito por trás dos novos templos de consumo e o que acontece quando o divino vira produto, prometendo salvação para corpo e alma?

A jornada humana é uma constante busca por significado, transcência e, por vezes, alívio. No centro dessa busca, a relação com substâncias alteradoras de consciência e com a própria fé revela camadas complexas de poder, cultura e subjetividade. Mais do que ferramentas de escapismo ou devoção, as drogas , no sentido dos vícios , e a fé, se entrelaçam em discursos que desafiam a modernidade, moldam identidades e, surpreendentemente, dão origem a novos nichos de consumo, como falamos em outros momentos (veja + sobre em Estética da Noite em sara-york).

Como pessoa PcD e Trans, minha trajetória é atravessada por tensões em suas dimensões biológicas, culturais e performativas - e como pioneira no levantamento sobre cotas trans no Brasil, tenho visto de perto como o corpo e a alma são campos de batalha e ressignificação. 

Minha experiência como professora convidada em Harvard, em março deste ano, abruptamente interrompida pelo corte de financiamentos para pesquisas trans, anunciado por Donald Trump, apenas sublinhou a urgência de defender o conhecimento e a dignidade contra discursos de apagamento que usam um "deus" como direcionador do ódio humano.

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Dep. Pastor Henrique Vieira, Sara York e Cidinha da Silva participam da mesa 9 no dia 26

A patologização do desvio - A forma como uma sociedade lida com as drogas e seus usuários é um espelho de suas estruturas de poder. O filósofo Michel Foucault nos oferece uma lente poderosa para entender isso. 

Para Foucault, as drogas, assim como a loucura e a sexualidade, tornam-se ferramentas de controle social. Ele apresenta o "viciado" ao longo da história como um "sujeito a ser corrigido", uma construção que reflete como os discursos médicos e legais impõem normas sociais, moldando percepções e políticas públicas. 

A categorização do usuário como doente ou criminoso serve para aplicar poder e manter a ordem. É um processo de "normalização" que desvia o olhar dos contextos sociais e culturais para a falha individual.

Essa patologização contrasta abruptamente com usos milenares de substâncias. Sigmund Freud, em "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", já nos alertava para a complexidade do desejo, sendo o primeiro a explorar a prática sexual separada de um objeto externo, por meio das pulsões parciais e do autoerotismo. 

Essa ideia, de que o prazer pode ser obtido de diversas formas e que a sexualidade é muito mais ampla do que a norma impõe, serve de base para desmistificar muitos preconceitos, incluindo os relacionados ao uso de certas substâncias.

Xamanismo e espiritualidade: outros caminhos - Longe dos consultórios psiquiátricos e dos discursos repressivos, o uso xamânico de drogas oferece uma perspectiva radicalmente diferente. 

Em comunidades indígenas e, mais recentemente, no crescente turismo de ayahuasca no Peru, substâncias como a ayahuasca e os cogumelos mágicos são vistas como ferramentas espirituais para autodescoberta e cura. Xamãs e participantes relatam experiências transformadoras, enquadradas como jornadas espirituais que aprimoram a compreensão de si mesmos e do universo, desafiando a noção ocidental de que o uso de drogas é puramente recreativo ou patológico.

Essa abordagem neo-xamânica resgata o significado espiritual e cultural dessas substâncias, onde elas são sacramentos, não vícios. Ela expõe a arbitrariedade de discursos monolíticos sobre drogas, que frequentemente ignoram contextos culturais, históricos e sociais diversos.

A interseção entre gênero e o "mercardo da alma" - A teoria de Foucault, quando cruzada com perspectivas indígenas e decoloniais, revela o potencial das drogas como local de resistência contra estruturas de poder dominantes, abrindo caminho para formas alternativas de ser e conhecer. 

O filósofo e psicanalista Rafael Leopoldo estudou drogas, policiamento e saberes que ganhavam formas elucidativas nos muitos encontros de vida, dentre eles, o expresso em "A Queda do Céu", de 2010, livro escrito por Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomam, onde por vezes não se sabe quem dirige e orienta os saberes do/com Xamã ou com/do antropólogo.

Os escritos de mulheres sobre suas experiências com drogas, por exemplo, enriquecem esse discurso, fornecendo visões únicas sobre as dimensões de gênero no uso de substâncias, identidade e empoderamento.

No entanto, em um giro surpreendente, a espiritualidade contemporânea está se tornando um novo campo de consumo. No mercado da alma, a fé saiu dos templos e invadiu feeds, discursos, posicionamentos e, claro, virou produto. 

Influencers se convertem, pastores lançam bancos digitais, surgem streamings e linhas de maquiagem com nomes bíblicos, skincare com "devotional", cosméticos com óleos sagrados e até lingeries com mensagens de fé.

O que emerge é um ecossistema de consumo com códigos espirituais próprios com uma lógica sedutora: se é criado por alguém da fé, é moralmente seguro. Isso resolve uma dor real - o medo da contaminação simbólica - e ativa um desejo profundo por segurança, pertencimento e identidade.

 Quantas vezes vimos e ouvimos Claudia Leitte cantando sua música, agora sem as palavras proibidas, que antes remetiam a religioes de matriz africana. As necessidades humanas (físicas, emocionais, cognitivas e espirituais) sugerem, essa interdependência é explorada por um mercado que vai além da palavra, tocando o corpo, o toque, o banho, a estética. 

Marcas de bem-estar ocupam o vácuo deixado pelo declínio das religiões institucionais, oferecendo "transcendência" através de rituais com playlist celestial, banho de lavanda, yoga, massagens e por aí vai. O mercado de psicodélicos, crescendo 14,5% ao ano, surge como uma alternativa de "transcendência", mas para quem não busca esse caminho, o ritual é outro.

Esses produtos não são apenas lifestyle. São filtros morais, símbolos de pertencimento e ferramentas de normatização. Quando o consumo se limita a quem compartilha da sua fé, o líder espiritual pode se tornar o "xamã" da sua rotina, o "coach" da sua casa, o "economista" do seu dinheiro. É um conforto que pode se transformar em um sistema sofisticado de influência e controle simbólico. Falamos muito sobre isso quando palavras-chave eram usadas por conservadores como "apito de cachorro".

A música de Renato Russo - A complexidade dessa busca por sentido, prazer e transcendência, e o peso da realidade, foram eternizados por Renato Russo na música "Há Tempos" (1991): "parece cocaína, mas é só tristeza!".

Essa linha, marcante do vocalista da Legião Urbana, reflete a angústia social do Brasil das décadas de 1980/90, um período de ditadura, abertura política, censura e busca por liberdade e escapismo.

A alusão à cocaína e aos psicodélicos de forma geral na cultura dos anos 1960 evoca uma busca por expandir a consciência e a realidade. A frase de Russo, no entanto, subverte a expectativa: não é a droga que provoca a intensidade, mas uma tristeza tão profunda que simula o efeito. É uma crítica à superficialidade dos prazeres fugazes diante de uma dor e desilusão que são inerentes ao contexto social e existencial, parece novo, mas o pensamento é discutido com Rafael Leopoldo desde nossos cursos sobre teoria queer ministrados ao longo da pandemia de covid-19, onde as pessoas deixavam grafadas suas necessidades de direcionamento.

Isso nos leva de volta ao ponto de partida: a necessidade de considerar múltiplas perspectivas e experiências no discurso sobre drogas, poder e sociedade. Seja através das lentes de Foucault, do xamanismo, da psicanálise, do mercado da alma ou da arte, a relação humana com a alteridade - seja a do corpo trans, a da substância ou a da fé - é um terreno fértil para a compreensão de nós mesmos e da sociedade em que vivemos.

Quem baliza seu encontro com dEUs? Qual é o seu ritual? Tem funcionado? 

Se sim, provavelmente você está nos caminho certo! Se não refaça os calculos e reveja as métricas porque em 2025 o que não falta é igreja, templo ou tenda, deus ou deusa, e experiências (multisensoriais) para um "encontro", seja lá com o que te faz bem!

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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