Medicina e ditadura
Decisão do TRF-3 reconhece crimes de médicos da ditadura como imprescritíveis e reacende debate sobre cumplicidade da Medicina com a repressão
No último dia 10 de junho, o TRF da 3ª Região proferiu importantíssima decisão no campo da memória, verdade e justiça no Brasil, acolhendo recurso do MPF que contestava decisão da 6ª Vara Criminal de São Paulo, a qual rejeitava denúncia contra Harry Shibata e Antonio Valentini, ex-legistas do IML de São Paulo durante a ditadura, sob o argumento de extinção de punibilidade assegurada pela Lei da Anistia de 1979. Na prática, a mais recente decisão do TRF-3 reconheceu que os médicos cometeram crimes contra a humanidade, os quais, nessa condição, são imprescritíveis, não suscetíveis de anistia e passíveis de condenação.
O caso se refere aos assassinatos, em 1973, de Sônia Maria de Moraes Angel Jones e Antônio Carlos Bicalho Lana. Pela versão da ditadura, as mortes ocorreram em troca de tiros com a polícia, narrativa refutada pelo Ministério Público, que alegou o sequestro das vítimas, com sucessivas execuções decorrentes de bárbaras torturas e posterior descarte dos corpos, com nomes falsos, em valas clandestinas atribuídas a indigentes.
Os médicos teriam falsificado laudos necroscópicos, ocultando torturas e compactuando, doravante, com a ocultação de cadáveres. Harry Shibata é famoso também por ser acusado de falsificar laudos nas mortes do jornalista Vladimir Herzog e do sindicalista Manuel Fiel Filho, nas dependências do DOI-CODI. Ambos, segundo a ditadura, teriam sido vitimados por suicídio, porém com versões veementemente desmentidas pela Comissão Nacional da Verdade e, no caso de Herzog, até mesmo com condenação internacional do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A brutalidade das ações chama a atenção para a complexidade das artimanhas da ditadura, que usava a mão de ferro do Direito para legitimar crimes de Estado e da Medicina para mascará-los e abafá-los. A cumplicidade de cientistas com o estado de exceção — fato banalizado em períodos de terror — é algo que não pode ser esquecido. Ao contrário, deve ser sempre lembrado, para que fique claro como a conveniência política e/ou econômica se sobrepõe à ética quando o desmando impera. Não por acaso, recentemente houve juristas tentando fundamentar, na própria Constituição, a intervenção das Forças Armadas no golpe frustrado de 8 de janeiro de 2023. Não por acaso, houve médicos defendendo, com natural tranquilidade, remédios ineficazes para o tratamento da Covid-19 durante a pandemia.
A propósito, no Ceará, a Comissão Especial de Anistia Wanda Rita Othon Sidou prevê, em sua formação, uma vaga a ser preenchida por um representante do Conselho Regional de Medicina (CRM), mas a atual gestão do Conselho se negou a apresentar nome, justificando não dizer respeito às suas competências legais. Diante de todo o exposto, pergunto-lhe: será?
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