Leia a íntegra do discurso de Lula em coletiva de imprensa no encerramento da Cúpula do BRICS
"Temos convicção que a gente não quer mais um mundo tutelado", disse o presidente brasileiro
247 – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou nesta segunda-feira (7), durante coletiva de imprensa no encerramento da 17ª cúpula do BRICS, no Rio de Janeiro, que o bloco representa uma nova forma de fazer o multilateralismo sobreviver no cenário internacional.
“No BRICS, a gente tem convicção que a gente não quer mais um mundo tutelado. A gente não quer mais guerra fria. A gente não quer mais desrespeito à soberania. A gente não quer mais guerra”, enfatizou.
Leia o discurso de Lula na íntegra:
“Bem, companheiros e companheiras, eu acho que, depois da apresentação do Mauro [Vieira, ministro das Relações Exteriores], das coisas que aconteceram no BRICS, eu termino o dia extremamente feliz, porque eu não tenho dúvida nenhuma que o Brasil já tinha realizado a melhor reunião que o G20 já tinha feito. E o Brasil hoje realizou a mais importante reunião que o BRICS já fez.
Porque nós convidamos novas pessoas, gente importante, para que a gente os convença de que o BRICS é um novo jeito de a gente fazer o multilateralismo sobreviver no mundo.
No BRICS, a gente tem convicção que a gente não quer mais um mundo tutelado. A gente não quer mais guerra fria.
A gente não quer mais desrespeito à soberania.
A gente não quer mais guerra.
E é por isso que a gente está discutindo com muita profundidade a necessidade de mudança estrutural, inclusive no Estatuto da ONU [Organização das Nações Unidas], para que a gente possa recriar alguma coisa com base nos acontecimentos geopolíticos de 2021 e não de 1945.
Aquele mundo ficou para trás. Só os saudosistas daquele mundo – do nazismo, do fascismo – são outros que não estão no BRICS. No BRICS, a gente quer fortalecer o processo democrático, o processo multilateral. A gente quer a paz, o desenvolvimento e a participação social.
Este BRICS teve uma novidade extraordinária, que foi a participação das empresárias mulheres, que é uma novidade boa, e a participação da sociedade civil, representada com um documento que será lido pelo chefe de Estado. Se a gente quiser criar alguma coisa nova no mundo, a gente vai ter que criar novos paradigmas de participação e não pode repetir os mesmos erros.
A gente não quer mudança no FMI [Fundo Monetário Internacional] porque eu não gosto do FMI. A gente quer mudança no FMI para o FMI ser um banco de investimento para atender as necessidades dos países mais pobres. Não é para emprestar dinheiro e levar os países à falência, como tem acontecido, porque o modelo de austeridade que tem sido feito com outros países é fazer com que a dívida seja impagável cada vez mais.
Então, o que nós queremos mudar é criar um sistema financeiro, e o Banco do BRICS serve de modelo, que a gente possa criar um novo tipo de financiamento, em que a gente possa garantir, inclusive, que alguns países que devem possa ser utilizada a dívida como forma de investimento em infraestrutura, no setor da saúde, no setor energético, no setor de infraestrutura.
Alguma coisa tem que mudar! O que a gente não pode é continuar com a mesmice de sempre.
Nós já temos um século de experiência. Depois da Segunda Guerra Mundial, nós já temos quanto? Nós já temos 80 anos de experiência. Teve coisa que deu certo e teve coisa que não deu certo.
O multilateralismo foi uma coisa que deu certo. Querem destruir. Então, essas coisas nós precisamos ter consciência de que o mundo precisa mudar.
Nós estamos vivendo hoje, possivelmente, depois da Segunda Guerra Mundial, o maior período de conflito entre os países. É guerra esparramada para tudo quanto é lado. E o que é mais grave é que o Conselho de Segurança da ONU, que deveria ser o paradigma para tentar evitar que essas guerras acontecessem, eles são os promotores.
Desde a Guerra do Iraque, desde a invasão da Líbia, da morte do Gaddafi [Muammar Gaddafi, ex-líder da Líbia], até a guerra com a Ucrânia. Ou seja, ninguém pede licença para fazer guerra, vai, toma a decisão, e vai fazendo. E depois a ONU perde credibilidade e autoridade para negociar.
Quem é que negocia? A guerra [entre] Rússia e Ucrânia, quem é que negocia?
Não tem uma instituição capaz de sentar na mesa os dois que estão em guerra, fazer uma avaliação e fazer uma proposta. Eu, de vez em quando, digo, eu já disse para algum jornalista brasileiro, no estrangeiro, de que o Putin [Vladimir Putin, presidente da Rússia] já sabe o que vai acontecer e o Zelensky [Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia] já sabe o que vai acontecer.
O que eu acho que está acontecendo nessa guerra, eu dizia outro dia um exemplo, é que nem se fosse em uma greve, o dirigente sindical radicaliza muito para fazer a greve, ele fica dizendo 100% ou nada, 100% ou nada, 100% ou nada, os dias vão passando e ele percebe que não vai vir 100%, mas ele não tem coragem de baixar os 100% para 80, para 90.
Eu queria saber o seguinte: o que vai acontecer na Rússia e na Ucrânia se não houver uma instituição multilateral ou um grupo de países, como foi feito entre China e Brasil, um grupo de amigos que diga: “olha, nem tudo que o Zelensky quer, nem tudo que o Putin quer. Vai ser isso aqui.”
Coloca na mesa uma alternativa. Se não tiver alternativa, vai ficar [em guerra], porque cada um tem o seu discurso para o seu público. E é muito difícil, depois do discurso, você voltar atrás.
É muito difícil. Até vocês, quando escrevem um artigo que uma pessoa reclama que não está correto, vocês têm dificuldade de voltar atrás.
Você imagina numa guerra, imagina numa guerra do setor público.
Então, o mundo, vamos ser francos, o que está acontecendo em Gaza já passou da capacidade de compreensão de qualquer mortal no planeta Terra.
Dizer que aquilo é uma guerra contra o Hamas? E só se mata inocentes, mulheres e crianças? E cadê a instituição multilateral para colocar um fim nisso? Não existe!
A ONU deveria estar coordenando, mas a ONU não pode coordenar, porque ela está envolvida nisso. Então, companheiros e companheiras, quando eu digo a ONU, é porque a ONU é composta, no seu Conselho de Segurança, pelos países que estão envolvidos nisso. Com raríssima exceção, a China, que não está, mas o restante está envolvido, tanto na Europa quanto os Estados Unidos.
Então, você está sem interlocutor. Não existe interlocução para fazer uma proposta alternativa, nem em Israel, nem na Ucrânia, nem no Congo, nem no Sudão. Não tem. Não existe!
É por isso que nós estamos reivindicando uma mudança na governança mundial, que participe país africano, país do Oriente Médio, que participe país da América Latina...
Qual é a explicação de uma Índia não estar no Conselho de Segurança da ONU? De um país como o Brasil? Ou o México? Ou a Nigéria, que tem 240 milhões de habitantes? Ou a Etiópia, que tem 120 e poucos milhões de habitantes? Ou o Egito, que tem mais de 100 milhões habitantes? Ou a África do Sul? Qual é a explicação? Nenhuma.
Ou seja, os que ficaram no Conselho de Segurança, em 1945, não querem sair e não querem permitir que outros entrem. Então, é difícil.
O BRICS, que não nasceu para afrontar ninguém, o BRICS quer apenas ser um outro modelo, um outro modo de fazer política, uma coisa mais solidária, que o banco esteja muito mais preocupado em ajudar os países em desenvolvimento a se desenvolver, os países mais pobres. Que, na questão ambiental, a gente tenha consciência, como foi demonstrada hoje no BRICS, de que todo mundo tem consciência que a questão do clima é muito séria.
As coisas estão acontecendo e nós não controlamos as mudanças das intempéries, nós não mudamos. Então, o que a gente tem é que cuidar para que não haja [os problemas]. Por isso que nós temos que cuidar dos oceanos, cuidar da floresta, cuidar do ar que nós respiramos.
Não existe nenhum radicalismo, não é coisa de ambientalista, não é coisa de universitário, não é coisa de bicho-grilo, como se falava antigamente, não. É coisa de gente que acredita na ciência. O mundo pode passar por uma catástrofe, como essa que aconteceu no Rio Grande do Sul, essa que aconteceu agora no Texas, nos Estados Unidos.
Pode acontecer.
Então, eu acho que o BRICS é um modelo novo, uma coisa nova, uma coisa que se trata com muito mais cuidado, não é uma coisa fechada, não é um clube de privilegiados.
É um conjunto de países querendo criar um outro jeito de organizar o mundo, do ponto de vista econômico, do ponto de vista do desenvolvimento, do ponto de vista da relação humana.
Uma outra coisa tem que ser feita, inclusive sobre a questão da inteligência artificial.
É preciso que a gente, no BRICS, crie um sistema de discussão em que todos possam ter acesso à inteligência artificial. Ela não pode ser uma coisa de dominação de meia dúzia de empresas que vão controlar os bancos de dados no mundo, sabe? Quando, na verdade, o Estado é que tem que assumir a responsabilidade de garantir que não se use banco de dados para fazer guerra, para contar mentiras, para contar inverdades. Não é isso que está em jogo.
E eu acho que, por conta disso, o BRICS está incomodando!
O que que era o mundo antes do BRICS? Inclusive, uma coisa importante que nós vamos ter que criar condições é que, todo ano, a gente vai para a Assembleia Geral da ONU e cada presidente faz o discurso que quer, vai embora. Não escuta o outro, e cada um fala, e vai embora.
É como se fosse um shopping de produtos ideológicos. Cada um vende o que quer, compra o que quer, sem nenhum compromisso de ler ou não.
Ou seja, é preciso que a ONU tenha uma conferência para discutir a questão das guerras.
Vamos passar um dia, dois dias, uma semana discutindo essa questão das guerras. O que a gente vai fazer para acabar com as guerras? O que a gente vai fazer na questão do clima? Se a ciência nos ensina e nós tomamos decisão, quem é que vai cumprir? Quem é que vai cobrar?
Se a gente não tiver uma instituição de governança mundial com mais representatividade e com mais seriedade, nós estamos entrando em um sistema muito, muito, muito destrutivo do funcionamento da relação entre Estados, que não faz bem para ninguém. Me parece que o BRICS pode ser essa válvula de escape que a Humanidade precisa para fazer alguma coisa nova.
Eu, sinceramente, acho que a gente até deveria convidar os [demais] países, porque nós já fomos dez do G20 no BRICS. Dez. É só convidar os outros dez para vir para o BRICS. Aí fica uma coisa só, todo mundo discute o mesmo assunto.
Não precisa ter G7, ter G20. Fazer uma coisa só, todo mundo, que poderia ser a ONU, o grande centro de debates dos problemas mundiais. Não é mais! E todo mundo sabe que não é.
Por isso é que o Brasil, há tempo, reivindica o direito de participar.
Bem, eu estou muito feliz com essa reunião e estou muito feliz com o papel que o Brasil tem jogado nisso, porque nós já fizemos o G20 no final do ano passado, estamos fazendo agora o BRICS, vamos fazer a COP30 no final do ano. São três eventos magnânimos, muito importantes, e nesses três eventos o Brasil quer criar um novo paradigma de comportamento.
Na COP30, no Brasil, nós vamos ter que discutir uma coisa muito séria. Os líderes do mundo acreditam no que a ciência está falando sobre a questão do clima? É verdade o que a ciência tem nos mostrado? Que as mudanças são concretas e irreversíveis se nós não mudarmos de comportamento?
Se nós acreditarmos que é, nós vamos ter que tomar atitude!
Não vamos ficar esperando que os donos dos foguetes vão sobrevoar para achar um planeta. Tem gente procurando lugar para morar, mas oito bilhões de seres humanos não têm onde morar.
É aqui mesmo. É aqui. Então, nós precisamos cuidar disso.
Está nas nossas mãos cuidar. O Brasil tem os seus compromissos, aqui nos países do BRICS há muito compromisso. Eu quero lembrar a vocês que em 2010, 2009, na COP de Copenhague, a China era tratada como se fosse a bandida poluidora do mundo.
É importante lembrar, eu estava lá. O Celso Amorim [Assessor-Chefe da Assessoria Especial do presidente da República] estava lá. O Mauro não estava, porque o Mauro é um jovem. Não estava lá.
Pois bem, naquele encontro, a China era tida como bandida. Estados Unidos, França, Alemanha, todo mundo queria punir a China.
Nós nos recusamos a fazer parte, dizendo que tinha um contencioso a ser pago, tinha um passivo. Os países industrializados tinham poluído o planeta muito mais do que a China, e eles não tinham pago nada. Então, o que nós queríamos é que eles pagassem esse contencioso.
Hoje, possivelmente, a China seja o melhor modelo de país que está enfrentando a questão do clima. É o mais rápido na transição energética. E está tentando fazer com que a economia, efetivamente, seja uma economia desenvolvida de baixo carbono. Deveria servir de exemplo para o G7, para muitos países ricos.
É disso que nós tratamos aqui e é [sobre] isso que eu acho que nós vamos fazer os debates daqui para frente.
É importante dizer, o que foi decidido aqui é que nós não queremos continuar vivendo no mundo como estamos vivendo. É preciso mudar o nosso comportamento com relação ao tratamento da saúde do povo.
É preciso que a gente mude o nosso comportamento com relação ao modelo de desenvolvimento. É preciso que haja mais financiamento e precisa mudar o modelo de financiamento. E também que a gente precisa construir a paz no mundo.
Essas são as coisas mais sagradas que nós decidimos.
Eu, sinceramente, estou feliz. Acho que foi mais uma coisa forte que o Brasil mostrou que tem competência de articular.
E eu termino aqui com vocês muito, muito, muito agradecido. Pense, eu estou triste de um lado porque o Corinthians não foi convidado para disputar essa Copa do Mundo. Se fosse, estaria na final. Mas não foi.
Então fica aí a minha tristeza e a minha alegria porque o BRICS está se tornando campeão do mundo em políticas, sabe, ambientais, em políticas de inteligência artificial, em políticas de desenvolvimento e envolvimento da sociedade no debate.
Dito isso, eu me coloco à disposição de vocês para meia pergunta.”
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