Verde-limão
Escritores e jornalistas adoram xeretar a conversa dos outros
- O almoço começou à uma da tarde e acabou à uma da manhã.
- Aí você foi dormir?
- Não, aí que começou.
- Começou o quê?
- A farra. Uma galera que tava lá e que eu nem conheço direito, me chamou para outra festa.
- Como foi?
- Vários casais entrando em uns quartos, rolando de tudo e mais um pouco. Daí eu apaguei. Hoje, acordei na poltrona da sala. Eram 2 e meia da tarde. Fui ao banheiro, bebi água da bica e me mandei.
Escritores e jornalistas, curiosos por natureza, costumam se interessar pela conversa alheia. E quando as pessoas falam alto facilita. É o caso desses dois homens, jovens homens. Eles estão atrás de mim na fila do sapateiro.
O festeiro quer ir para casa se recuperar e o outro pede que ele faça companhia, porque precisa pegar o sapato para um casamento. Promete um café com pão de queijo na lanchonete em frente. Convence o baladeiro.
Pelo espelho, vejo uma ressaca colossal nos olhos vermelhos e no topete descolorido. Já o colega, ainda suado da corrida, segura na coleira uma comportada vira-lata.
O boêmio, o atleta, a sentinela.
Seu Odilon entrega meus sapatos, agora lustrosos. Como outros clientes esperam, preciso sair. As revelações da patuscada sem fim ficam pra próxima.

Tudo isso aconteceu durante o último feriado. O sapateiro, a lanchonete e a costureira Regina estão de portas abertas, assim como a barbearia do Ed e a loja de material de construção - com assentos acolchoados de vaso sanitário e promoção de coloridas vassouras.
A Vila Buarque, minha aldeia há quase oito anos, é endereço de pequenas lojas. Cada um é dono do seu negócio; muitos nem têm funcionários. Abrem e fecham quando têm vontade ou o calo aperta.
Meu celular deixou de funcionar na véspera e eu espero o shopping abrir para ir à loja da operadora.
Mas, se a Vila está tão viva é provável haver solução por perto. É o que penso, esperançoso. E ela está logo ali: uma loja que conserta celulares e vende acessórios. Aberta para atender e também revelar histórias. Farid, o dono, deixou o Líbano por causa da guerra. Muçulmano, trata o feriado de Corpus Christi como dia normal.
Farid me recebe, descobre o problema e a bateria volta a funcionar. Pago e volto pra casa. Descubro que se a bateria está revigorada, o whats app ficou inacessível. Retorno a Farid. Ele mexe e remexe no celular. Testa. Garante que, agora sim, está resolvido e pede desculpas.
O que acontece no balcão miúdo é uma experiência cada vez mais rara e por isso valiosa: ser atendido por uma pessoa e não por uma empresa. Uma empresa que tem robôs, aplicativos, chats. Muita tecnologia e quase ninguém para ouvir o cliente.
Com Farid, converso. A gente se entende e o celular vibra ao receber as mensagens atrasadas.
Andava curioso para conhecer o Farid. Há um mês ele se tornou muito famoso por aqui.
Farid mora dentro da loja e antes de começar o dia de trabalho deixou a porta entreaberta, enquanto trocava de roupa. Um desconhecido enfiou o braço pela brecha e pegou de mão cheia um punhado de capas de telefone.
Farid viu e correu, furioso, atrás do ladrão. Jovem e forte, amedrontou o homem, que jogou as capas na calçada e, enfim, conseguiu escapar.
O que fez Farid famoso não foi a perseguição, mas um detalhe peculiar: ele estava sem camisa, descalço e de cueca. Uma apertadíssima cueca verde-limão, é o que dizem. A Vila parou pra assistir a cena.
Farid, um tanto envergonhado, até hoje evita comentar a perseguição e, mais ainda, a cueca verde-limão. E assim, de ouvidos atentos, fui mais um a trabalhar naquele feriado. Dia útil na Vila Buarque.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: