Revolução silenciosa de Noam Chomsky vive em cada mente que ousa pensar
Mesmo sem fala, Noam Chomsky inspira com seu legado de resistência, desafiando o status quo e guiando a luta por um mundo mais justo
Eu nunca o encontrei, mas Noam Chomsky sempre esteve presente. Aos 96 anos, o linguista, filósofo e ativista americano que desafiou o mundo com sua mente afiada agora vive um silêncio forçado. Um acidente vascular cerebral devastador, em junho de 2023, roubou sua fala e, ao que tudo indica, sua capacidade de escrever. Em São Paulo, onde mora com sua esposa, Valeria Wasserman Chomsky, ele deixou o hospital em 2024 para se recuperar em casa. Mesmo preso a uma cadeira de rodas, com o lado direito do corpo comprometido, dizem que seus olhos ainda brilham de indignação ao ver imagens da guerra em Gaza. É como se, mesmo sem voz, Chomsky continuasse gritando.
Filho de imigrantes judeus ucranianos, ele nasceu na Filadélfia em 1928, numa casa onde política e ideias fervilhavam. Aos 10 anos, garoto prodígio, escreveu um artigo sobre a queda de Barcelona na Guerra Civil Espanhola. Quem diria que aquele menino, fã dos Phillies até abandonar o beisebol por livros, se tornaria o “trono das palavras”? Ele escrevia à mão, detestava e-mails até o século XXI e trabalhava 16 horas por dia, com uma disciplina que beirava a monástica. Seu humor cortante era lendário: quando o chamaram de um dos “mais citados” ao lado de Freud, riu e disse que citações só medem egos, não verdades.
Chomsky nunca se curvou. Na Guerra do Vietnã, nos anos 1970, ele era uma tempestade. Seu ensaio de 1967, que acusava intelectuais de conivência com o imperialismo americano, incendiou debates. Preso em protestos, vigiado pelo FBI, ele desmascarava a mídia que vendia a guerra como heroísmo. Anos depois, em 1980, chocou ao defender o direito de um negacionista do Holocausto de falar. Não porque concordasse — ele abominava aquelas ideias —, mas porque acreditava que censurar até o pior dos homens abre as portas para silenciar dissidentes. Polêmico? Sim. Corajoso? Mais ainda.
E então veio o 11 de setembro. Enquanto o mundo se unia à “guerra ao terror”, Chomsky nadava contra a maré. Para ele, as invasões do Afeganistão e do Iraque eram puro imperialismo disfarçado de justiça. Ele alertou que o militarismo só geraria mais ódio, e o tempo lhe deu razão. Suas palavras, inicialmente vaiadas, ecoaram quando as promessas de democracia no Oriente Médio desmoronaram em sangue e caos.
O que fazia Chomsky tão singular? Ele via liberdade como mais do que ausência de correntes. Para ele, era o direito de moldar nosso destino, livres do jugo de corporações que compram democracias. Ele desprezava o que chamamos de “democracia” hoje — uma farsa, dizia, onde elites manipulam a mídia para nos fazer engolir suas agendas. Justiça, para Chomsky, não era caridade, mas a destruição de sistemas que condenam milhões à miséria enquanto poucos nadam em ouro. E paz? Paz exigia desarmar o monstro do militarismo global, especialmente o americano, que ele acusava de semear guerras por lucro.
Seus livros são mapas para entender o mundo. Em 1957, ele publicou um texto que mudou a linguística para sempre. Era técnico, cheio de diagramas, mas provava que a linguagem é algo que nasce com a gente, como respirar. Décadas depois, com Edward S. Herman, ele escreveu um livro que é como um soco no estômago. A mídia, eles diziam, não informa — ela fabrica o que você pensa, servindo aos poderosos. Em 2003, ele alertou que a obsessão dos EUA por dominar o mundo poderia nos levar à beira do abismo. E, em 2024, já silenciado pelo AVC, seu último trabalho desmontava o mito de que a América é a terra da liberdade.
Chomsky me ensinou a duvidar. Ele dizia que a pobreza não é destino, mas um roubo organizado. Que a verdade não cai do céu — você tem de cavar por ela. Ele desmascarava os truques dos poderosos: inventar inimigos externos, como “terroristas” ou “comunistas”, para nos manter assustados e obedientes. Ele me mostrou que direitos não são presentes de governantes, mas conquistas arrancadas na luta. E que a história, quando contada só pelos “grandes homens”, nos faz sentir pequenos, como se mudar o mundo fosse tarefa de gigantes.
Ele também alertava sobre a crueldade de culpar os pobres por sua miséria. É uma artimanha, dizia, para os ricos posarem de salvadores enquanto saqueiam o planeta. Olhando para o Ocidente, ele via um vazio. Uma cultura de ideologias frágeis, que nos desconecta de quem somos. Ele pedia mais: uma busca por algo verdadeiro, por uma fé que não fosse só marketing.
Hoje, em São Paulo, Chomsky é um titã em repouso. Seu corpo pode estar frágil, mas seu legado é indestrutível. Ele nos deixou ferramentas — livros, ideias, coragem — para enfrentar um mundo que parece desmoronar. Enquanto crises de desigualdade, guerras e desinformação nos sufocam, sua voz, mesmo calada, ainda ressoa. Eu o imagino, olhando as notícias, com aquele brilho nos olhos. Ele nos desafia, como sempre fez: pense por si mesmo. Questione. Lute.
Porque, no fim, Chomsky não é só um homem. Ele é uma revolução. E revoluções não morrem.
Chomsky é um lampejo de consciência, sempre em busca da unidade essencial que conecta a humanidade. Ele foi a voz dos sem-voz, dos oprimidos que o mundo ignora. Pacifista convicto, escolheu a palavra quando outros corriam para os campos de batalha. Numa era seduzida pela inteligência artificial, ele privilegiou a inteligência natural — aquela que duvida, cria, resiste. Enquanto ele respira em seu apartamento, ao lado dos seus, a liberdade de pensar e de ser respira entre nós.
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