Ouro volta para casa: a desconfiança global e o ocaso do dólar
Alemanha, França e Holanda repatriam reservas, sinalizando um mundo que questiona a hegemonia americana
Ouro volta para casa: a desconfiança global e o ocaso do dólar
Alemanha, França e Holanda repatriam reservas, sinalizando um mundo que questiona a hegemonia americana.
Washington Araújo
Sob as ruas de Nova York, no ventre de concreto do Federal Reserve, barras de ouro brilham em silêncio. São toneladas de riqueza, guardadas por décadas, pertencentes a nações distantes. Mas o chão treme. Alemanha, França e Holanda, outrora confiantes, agora batem à porta. Querem seu ouro de volta. O metal, símbolo de poder e estabilidade, está deixando o solo americano, carregado em aviões sob escolta armada. É mais que logística: é um grito de desconfiança no sistema financeiro global.
O mundo financeiro não é mais um palco de certezas. A inflação galopa, as tensões geopolíticas fervem, e o dólar, outrora intocável, vacila.
Relatórios do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostram que a inflação global, projetada em 5,8% para 2025, corrói a confiança nas moedas fiat. O Banco Mundial alerta: taxas de juros altas, como os 4% previstos para 2025, apertam as economias emergentes. Nesse cenário, o ouro ressurge, não como relíquia, mas como âncora em mares tempestuosos.
Alemanha já repatriou 674 toneladas de ouro desde 2013, segundo o Deutsche Bundesbank. A Holanda, em movimento semelhante, trouxe 122 toneladas de Nova York, conforme o De Nederlandsche Bank. França, mais discreta, intensifica planos para reforçar seus cofres, diz o Banque de France. Esses números não são frios: são pulsos de nações que sentem o chão financeiro rachar.
O peso do símbolo - O ouro não é apenas metal. É soberania. É história. É a memória de crises superadas. Quando a Alemanha anunciou a repatriação, o Bundesbank declarou: “queremos construir confiança pública.” A frase ecoa. Em um mundo onde sanções americanas congelam reservas de países como Rússia e Irã, segundo o Banco Mundial, o ouro físico, intocável por decretos, ganha aura mítica. É o antídoto contra a incerteza.
A Holanda, em 2014, justificou sua decisão: “reforça a estabilidade do sistema financeiro.” França, com sua tradição de centralização, segue o mesmo caminho, ciente de que o ouro em solo próprio é um escudo contra choques externos. O Federal Reserve, em relatórios de 2024, confirma: pedidos de repatriação crescem, mas o banco mantém sigilo sobre volumes exatos. O silêncio fala alto.
O vento que sopra tem nome: desdolarização - Por trás do ouro, há um debate maior: a desdolarização. O dólar, pilar do sistema financeiro desde Bretton Woods, enfrenta ventos contrários. O FMI nota que a participação do dólar nas reservas globais caiu de 71% em 2000 para 58% em 2024.
A China, segundo o People’s Bank of China, testa transações em yuan digital, reduzindo a dependência do SWIFT, sistema dominado por bancos ocidentais. Um teste com os Emirados Árabes, em abril de 2025, concluiu uma transferência em sete segundos, desafiando a lentidão do dólar.
“A desdolarização é uma realidade”, afirmou Maria Zakharova, porta-voz russa, em 2024, citada pelo Brasil de Fato. Países do BRICS, em cúpula recente, defenderam moedas locais para o comércio, segundo a agência Tass.
O ouro, nesse contexto, é mais que reserva: é um grito de independência. Nações como Índia e Turquia, segundo o Banco Mundial, aumentaram suas reservas de ouro em 2024, sinalizando a mesma desconfiança.
O dólar não cai sozinho. A reeleição de Donald Trump, em 2024, trouxe tarifas comerciais e incertezas, diz o IPEA. Suas políticas, apelidadas de “Acordo de Mar-a-Lago” pelo Washington Post, sugerem um abalo no sistema monetário global.
O Federal Reserve, sob Jerome Powell, mantém juros altos, mas a confiança global encolhe. “A hegemonia do dólar foi construída em décadas, mas pode desmoronar em instantes,” alertou Barry Eichengreen, economista de Berkeley, em 2025.
A desvalorização do dólar, notada pela BBC em junho de 2025, eleva preços de importações e inflação. Países emergentes, como o Brasil, sofrem com a alta do dólar, que atingiu R$ 6,29 em dezembro de 2024, segundo o IPEA.
O ouro, imune a essas oscilações, torna-se refúgio. “Diversificar reservas é essencial,” diz Li Yuefen, economista do BRICS, citada pelo Brasil de Fato. O ouro é a cesta onde ninguém quer colocar todos os ovos.
A Europa na encruzilhada - Alemanha, França e Holanda não agem por capricho. A Europa, segundo a Xinhua, enfrenta “incertezas políticas” em 2025. A ascensão de partidos populistas, como a Alternativa para a Alemanha (AfD), e a dissolução do governo alemão, relatada em dezembro de 2024, amplificam a insegurança.
A União Europeia, com PIB de 17 trilhões de euros, busca autonomia, diz Rubens Ricupero, ex-ministro brasileiro, em Veja. O ouro em solo europeu é um passo nessa direção.
O Banque de France, em relatório de 2024, destacou a “necessidade de resiliência monetária.” O Bundesbank reforça: “O ouro é um ativo de crise.” A Holanda, com sua economia aberta, vê o metal como seguro contra choques comerciais, segundo o De Nederlandsche Bank. Essas nações, unidas pela desconfiança, reescrevem a geografia do poder financeiro.
O futuro é dourado? - O movimento de repatriação não é só sobre ouro: é sobre confiança. Ou a falta dela. O sistema financeiro global, construído sobre promessas e papéis, range sob o peso da incerteza.
O FMI prevê crescimento global de apenas 2,2% em 2025, pressionado por tarifas e tensões. O Banco Mundial alerta para a volatilidade dos preços de energia, que podem disparar a inflação. Nesse tabuleiro, o ouro é a peça que não cai.
Alemanha, França e Holanda, ao trazerem seu ouro para casa, enviam um recado. Não é só sobre barras brilhantes: é sobre soberania, sobre controlar o próprio destino. O dólar, ainda rei, vê seu trono balançar. A desdolarização, lenta, mas constante, ganha força.
Como disse Gerald Epstein, economista da Universidade de Massachusetts, em 2023: “A hegemonia do dólar alimenta o imperialismo. A desdolarização é a resposta do Sul Global.”
Um mundo em transformação - Os aviões carregados de ouro cruzam o Atlântico. Nos cofres de Frankfurt, Paris e Amsterdã, as barras encontram novo lar. É um ritual de desconfiança, mas também de esperança. Esperança de que, em um mundo de moedas frágeis e promessas quebradas, o ouro seja mais que um metal. Seja um farol.
O futuro do sistema financeiro é incerto. Mas, por ora, o ouro brilha. E as nações, cientes de sua luz, o querem por perto.
O dólar, em silêncio, observa.
O mundo, inquieto, espera.
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