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Sara York

Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.

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O corpo negro e trans na crise da liderança: a encruzilhada do Psol em Niterói

A figura de Benny Briolly, vereadora em Niterói pelo Psol, emerge no cenário político local como um potente sismógrafo de tensões raciais, de gênero e de classe

Benny Briolly
Em um encontro presencial carregado de sinceridade, a vereadora Benny Briolly, apesar do recente e intenso desabafo concedido à Revista Veja sobre as controvérsias em Niterói, fez questão de ressaltar à nossa reportagem um ponto crucial de sua trajetória: em seus 12 anos de filiação ao Psol, ela fundamentou sua atuação e suas lutas enquanto movimento social no espaço institucional. Fazendo uso dos quatro pilares da educação brasileira — aprender a ser, aprender a aprender, aprender a conhecer — Benny enfatizou que o mais importante de tudo foi “aprender a conviver com as diferenças”.

A figura de Benny Briolly, vereadora em Niterói pelo Psol, emerge no cenário político local como um potente sismógrafo das tensões raciais, de gênero e de classe que estruturam a sociedade brasileira. Sua trajetória como mulher trans, negra e parlamentar, por si só, já a posiciona em um campo de batalha simbólico e material. No entanto, o momento de controvérsia atual, onde sua legitimidade, credibilidade e elegibilidade são questionadas dentro do próprio partido, levanta indagações cruciares sobre a coerência do Psol com suas teses fundacionais e o destino das lideranças advindas de grupos historicamente marginalizados.

A Desumanização e o Silenciamento: Ecos de Fanon e Mbembe

A experiência de Benny Briolly, de ser apontada como liderança em discussões internas e, posteriormente, rebaixada à condição de “mais uma candidata” após acordos pós-votação, evoca diretamente a leitura de Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas. A desumanização do negro no colonialismo e a impossibilidade de se fazer reconhecer como sujeito pleno ressoam na forma como o capital político de Benny — construído através de uma vida de lutas e de uma identidade que desafia o status quo — parece ser deslegitimado ou subsumido por dinâmicas partidárias. O seu corpo, que Fanon descreveria como “marcado”, e a sua voz, que deveria ecoar as lutas que ela encarna, correm o risco de um silenciamento epistêmico.

Amplia-se aqui a noção de Achille Mbembe sobre a “necropolítica”, não apenas como a gestão da morte física, mas também como a gestão da “morte política” ou da “inviabilidade” de certas subjetividades. O “negro como figura liminar”, desprovido de um sujeito político pleno, criado pela modernidade colonial, encontra paralelo na marginalização da vereadora trans e negra em um processo decisório. A negação de sua liderança inata, sua reificação a uma “candidata”, pode ser lida como uma forma sutil de necropolítica, que inviabiliza sua potência política em vida.

A Matriz de Dominação e a Invisibilidade: Diálogos com Collins e Davis

A situação de Benny Briolly expõe, na prática, o que Patricia Hill Collins teorizou como a “matriz de dominação”. Raça, gênero (trans), e a posição de mulher negra em um partido político se entrelaçam para criar uma forma particular de marginalização. A dificuldade de Benny em manter seu lugar de liderança, mesmo dentro de um partido progressista, sugere que as estruturas de poder — raciais e cisgêneras — continuam operando, mesmo em espaços que se propõem a subvertê-las. A “epistemologia do ponto de vista” de Collins, que reivindica os saberes de mulheres negras como legítimos, é posta à prova quando esse saber e essa experiência são subalternizados em favor de outras lógicas políticas.

A ressonância com Angela Davis e sua obra Mulheres, Raça e Classe é inequívoca. Davis apontou a invisibilidade das mulheres negras nas lutas feministas e socialistas. A situação de Benny em Niterói levanta a questão se o Psol, ao relegá-la a uma posição secundária, está, inadvertidamente, perpetuando essa invisibilidade, tratando a mulher negra e trans como uma “força política esquecida na cena pública e revolucionária”, a despeito de todo o capital político e de pautas que ela representa.

A Ilegibilidade do Negro e o Palco da Branquitude: Contribuições de Ferreira da Silva e Kilomba

O cenário em Niterói também pode ser lido sob a perspectiva de Denise Ferreira da Silva e o conceito de “transparente racial”, que torna o negro ilegível dentro da lógica moderna. A incapacidade de certas estruturas, mesmo as progressistas, de reconhecerem plenamente a liderança e a agência de uma mulher negra e trans, sugere que o “transparentar racial” ainda opera, esvaziando sua substância política e sua potência transformadora. Se a modernidade se construiu pela negação do negro como sujeito pensante, a política partidária contemporânea precisa estar atenta para não reproduzir essa mesma lógica.

Grada Kilomba complementa essa análise com a ideia de “o palco da branquitude”: a cena pública é frequentemente montada para e por sujeitos brancos. O lugar do negro, nesse palco, muitas vezes se restringe ao de “objeto de discurso”, e não ao de produtor e protagonista de sua própria narrativa. A controvérsia envolvendo Benny pode ser interpretada como uma tentativa de realocá-la nesse lugar de objeto — uma pauta a ser manobrada, em vez de uma agente política com autonomia e capacidade de liderança.

O Lugar de Fala em Cheque e a Marginalidade como Resistência: Carneiro, Ribeiro e bell hooks

A dinâmica descrita na situação de Benny Briolly coloca em cheque o conceito de “Stand-point" (lugar de fala), como lugar político e epistêmico, tambem articulado por Sueli Carneiro. Se o lugar de fala é um pressuposto para a legitimidade e a autoridade, a tentativa de descredibilizar a liderança de Benny é uma forma de silenciar seu lugar de fala, ou de transformá-lo em mera retórica, sem força de condução. A crítica de Carneiro à universalização do sujeito branco e masculino como única medida da racionalidade pública é vital aqui: o Psol, ao lidar com a vereadora, precisa questionar se suas ações não estão, na prática, reforçando essa universalização.

Finalmente, a controvérsia pode ser um momento de reafirmação da “marginalidade como lugar de resistência”, conceito caro a bell hooks. Se Benny Briolly é empurrada para a margem da liderança interna, essa mesma margem pode se tornar um espaço de onde sua voz e sua luta ressoem com ainda mais força, expondo as contradições do sistema e do próprio partido. O apagamento de vozes negras na produção cultural, política e educacional, apontado por hooks, é um risco real, mas também uma oportunidade para que a resistência se reorganize e reitere a potência de um corpo político que se recusa a ser silenciado.

O Psol e Suas Teses: Uma Prova de Fogo

Diante do exposto, a questão central que se impõe é: será que a situação atual de Benny Briolly em Niterói — uma mulher trans que encabeçou discussões e políticas transformadoras, e que foi atacada publicamente por figuras como Douglas Gomes e Rodrigo Amorim — é útil para um Psol que tenta se manter fiel às suas teses progressistas?

A resposta pende para um imperativo ético e político. Para que o Psol continue sendo um vetor de mudança e um bastião de suas próprias teses — que incluem a defesa das minorias, a luta contra o racismo, a transfobia e todas as formas de opressão — é crucial que ele não apenas apoie, mas eleve e legitime lideranças como a de Benny Briolly. A falha em fazê-lo não apenas reproduz as estruturas de dominação que o partido se propõe a combater, mas também compromete sua própria credibilidade perante a base que busca representar e, em última instância, com a história de lutas que o constitui. A forma como o partido gerencia essa controvérsia será um teste decisivo de sua coerência ideológica e de sua capacidade de construir uma política verdadeiramente inclusiva e revolucionária.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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