O Brasil não perdeu influência com Lula — está pagando a conta do bolsonarismo
A The Economist escolheu desmerecer o trabalho de reposicionamento de um país que foi empurrado ao abismo por Bolsonaro
A recente matéria da revista The Economist sobre a suposta “perda de relevância internacional” do Brasil sob Lula é mais uma evidência de como parte da imprensa internacional tem analisado a política externa brasileira com lentes míopes e, por vezes, mal-intencionadas. É irônico que se critique Lula por uma influência que ainda não se consolidou plenamente, ignorando que foi sob Jair Bolsonaro que o Brasil sofreu seu maior isolamento diplomático desde a redemocratização.
O governo Lula III não herdou um Brasil neutro, prestigiado e pronto para retomar sua liderança natural nos foros internacionais. Herdou um país desprestigiado, desconectado dos grandes debates globais, desacreditado como interlocutor confiável e ambientalmente classificado como pária.
Jair Bolsonaro desmontou a política externa brasileira, esvaziou o Itamaraty, agiu com hostilidade diante do multilateralismo e associou o Brasil às figuras mais controversas do cenário internacional — Donald Trump, Viktor Orbán, Benjamin Netanyahu. E quando o mundo enfrentava a maior crise sanitária do século, Bolsonaro zombava da ciência, sabotava a vacinação e colocava o país sob suspeita de genocídio e de forma mais dramática de genocídio indígena. Foi ali, e não agora, que o Brasil perdeu sua relevância.
É verdade que Lula ainda não recuperou totalmente o protagonismo de seus dois primeiros mandatos. Mas essa recuperação exige tempo e condições políticas internacionais que hoje são radicalmente diferentes. A ordem liberal internacional está fragmentada. O multilateralismo vive sua maior crise desde a fundação da ONU. A guerra na Ucrânia criou novas divisões. A ascensão da extrema direita, inclusive dentro do próprio “Ocidente”, deslegitima discursos de superioridade moral que sustentavam as velhas alianças atlânticas. O massacre de Israel à população civil indefesa de Gaza, com apoio de Washington, mancha ainda mais a autoridade ética das democracias ocidentais. Nesse mundo dilacerado, esperar de Lula uma diplomacia universalmente admirada em menos de dois anos é pura má-fé.
Mais ainda: o artigo da The Economist reproduz uma lógica binária entre “Ocidente democrático” e “autocracias do Sul”, esquecendo que potências como Índia e Israel, hoje tratadas como democracias funcionais, também flertam com o autoritarismo e o ultranacionalismo.
A crítica ao suposto alinhamento do Brasil com China, Rússia ou Irã parece ignorar que esses países fazem parte dos BRICS desde antes, que o Brasil sempre buscou autonomia diplomática — e que o princípio do não alinhamento, tão caro à nossa tradição, é justamente o que impede o país de se tornar satélite dos interesses americanos ou chineses.
Lula pode ser criticado por algumas ambiguidades, mas não por ser incoerente com a política externa brasileira de longa data.
Ao contrário do que afirma a revista, o Brasil voltou a ocupar espaços importantes na cena internacional. Na presidência rotativa do G20, ano passado, em novembro, trouxe para reunião no Brasil 18 chefes de Estado, incluindo os presidentes da China, Xi Jinping; e dos Estados Unidos, Joe Biden; a presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen; e o presidente da União Africana, Mohamed Cheick El Ghasouani.
No mês de julho, que começa amanhã, na presidência do BRICS em 2025, o Brasil sediará, no Rio de Janeiro, a cúpula de chefes de Estado e, em novembro, hospedará a COP30 em Belém do Pará.
Lula retomou o protagonismo na pauta climática, reaproximou-se da África e ampliou sua presença nos fóruns do Sul Global. Foi aclamado em Davos, na ONU e na União Africana. Foi recebido na França por Macron, com pompas e circunstâncias, pavimentando o caminho para a assinatura do acordo de comércio entre União Europeia e o Mercosul.
Em junho, assumiu, também, a presidência do Mercosul, com o objetivo de fortalecer a integração regional, destravar o acordo com a União Europeia e articular posições comuns na transição ecológica. Coube a Lula redinamizar a CELAC, conferindo nova energia à articulação política latino-americana, que havia sido esvaziada e desvalorizada sob Bolsonaro. Isso não é retração. É reconstrução.
Não se trata de endeusar Lula nem de ignorar os desafios. A política externa brasileira precisa, sim, de mais firmeza diante de violações de direitos humanos, venha de onde vierem. O Brasil não pode ser omisso frente às guerras, nem evitar o debate sobre democracia no Sul Global. Mas tampouco pode aceitar que as velhas potências ditas liberais exijam uma lealdade que elas mesmas não praticam.
O mundo exige uma nova postura: crítica, plural, pragmática e baseada em princípios. Lula está tentando construir esse caminho, com todas as contradições que isso implica. Em vez de reconhecer esse esforço de reconstrução, a The Economist escolheu desmerecer o trabalho de reposicionamento de um país que foi empurrado ao abismo diplomático por um governo antiglobalista, integracionista e reacionário.
A perda de influência não está no Planalto. Está na visão superficial de quem ainda espera um Brasil submisso, alinhado sem voz própria, desprovido de ambição global. Esse Brasil, sim, perdeu a relevância. E Lula está tentando resgatá-lo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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