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Ricardo Queiroz Pinheiro

Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

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No fio da navalha

A direita brasileira precisa manter o apoio da base popular mobilizada pelo bolsonarismo, mas ao mesmo tempo quer se livrar do mau cheiro do próprio Bolsonaro

Bolsonaro concede entrevista coletiva após prestar depoimento à Polícia Federal em Brasília - 05/06/2025 (Foto: REUTERS/Adriano Machado)

A direita brasileira caminha sobre um fio tenso e afiado. Precisa manter o apoio da base popular mobilizada pelo bolsonarismo, mas ao mesmo tempo quer se livrar do mau cheiro do próprio Bolsonaro. A equação é incômoda: como garantir o voto das camadas populares sem abrir mão da agenda de austeridade, privatização e desmonte dos direitos sociais? A solução buscada é uma engenharia híbrida — manter a linguagem de apelo popular, a retórica moralista e a agitação cultural, mas entregar a execução estrutural à ortodoxia fiscal e aos interesses do grande capital.

Essa ambição exige um malabarismo. O bolsonarismo revelou a existência de um eleitorado disposto a defender a ordem, mesmo quando ela vem revestida de brutalidade e perda de direitos. Mas o capital não precisa de descontrole; quer eficiência e subserviência. As trapalhadas institucionais, a retórica paranoica e o flerte com o caos permanente se tornaram incômodos para os gestores do projeto. O que se busca agora é um operador confiável: alguém que saiba dialogar com a base popular, mas que aceite tocar a partitura do tripé macroeconômico sem desafinar.

Não é um plano improvisado. Os movimentos são meticulosos. A elite quer preservar o impulso de direita no voto popular, mas sem dar espaço a um líder que fuja ao controle. O ideal é uma figura palatável, com aparência de equilíbrio e espírito conciliador, mas que, na prática, seja funcional à agenda do mercado. Um presidente fraco, neutralizado desde o início, ou — melhor ainda — um arranjo institucional que retire do Executivo qualquer poder efetivo. A principal expressão disso é a tríade: orçamento secreto, autonomia do Banco Central e judicialização da política.

A contenção do Executivo não depende mais de mudanças formais no regime político. Ela já opera, de maneira eficaz, por meio de uma tríade silenciosa: o orçamento secreto, que desloca o centro das decisões para o balcão do Centrão; a autonomia do Banco Central, que entrega o poder monetário a um núcleo blindado ao debate público; e a judicialização da política, que transforma o Judiciário em instância permanente de veto e/ou concessão. Juntas, essas engrenagens compõem uma arquitetura de bloqueio — pensada para neutralizar qualquer tentativa de reverter, mesmo que parcialmente, o programa neoliberal. O voto segue existindo, mas sua potência transformadora é amputada por fora.

Há, porém, uma complexidade que não pode ser ignorada. Não se trata de uma elite que domina contra o povo, mas que frequentemente obtém o consentimento ativo de parcelas expressivas dele. A adesão de segmentos populares à agenda neoliberal — marcada pela aversão à política institucional, pela idealização da ordem e por códigos morais conservadores — não nasce do acaso. Ela é cultivada por uma teia de mediações simbólicas que moldam visões de mundo, afetos e valores cotidianos. Nesse terreno, a disputa por sentido antecede e molda a disputa por poder. É aí que a guerra cultural entra: não como desvio retórico, mas como engrenagem essencial do projeto. Por meio dela, o neoliberalismo se apresenta como valor moral e o mercado como justiça superior — não imposta, mas desejada.

O bolsonarismo, nesse sentido, não é um acidente: é a expressão da capacidade do capital de traduzir seu projeto em afetos compartilhados. Combina cortes de direitos com retórica de redenção. Desmonta políticas públicas enquanto afirma proteger a família, a segurança e a liberdade. A lógica é brutal e eficaz: é possível perder renda, saúde, moradia — desde que se mantenha a sensação de pertencimento a uma ordem hierárquica que castigue os “outros”. A direita entendeu isso. E agora quer repetir a fórmula sem o elemento imprevisível: o próprio Bolsonaro.

Não há aqui contradição simples entre voto popular e projeto neoliberal. Há disputa — e o capital aprendeu a vencê-la por dentro. Através da mídia, das igrejas, dos aplicativos, dos algoritmos e das redes de sociabilidade concreta, molda desejos e fantasias políticas. O voto vira resposta a um enredo previamente montado: quem consegue nomear o medo e indicar o inimigo com mais nitidez, vence — mesmo que seu programa seja a continuidade do desmonte. É a vitória da política como gerenciamento de ressentimentos.

O social-liberalismo, espectro pálido da conciliação entre crescimento e inclusão, foi corroído por dentro e por fora. Já não convence o capital, nem empolga o povo. Suas promessas de justiça dentro da ordem tornaram-se anacrônicas diante da radicalização do rentismo e da erosão das formas de proteção social. A centro-esquerda, acuada, hesita entre defender o que ainda resta ou adaptar-se à nova racionalidade do capital. Enquanto isso, o projeto de dominação avança — mais técnico, mais frio, mais blindado.

O que está em jogo não é apenas a escolha do próximo presidente, mas a função política do voto. A elite busca um novo arranjo: onde se vota, mas não se decide; onde o Executivo se torna cerimonial e o Parlamento, um condomínio de interesses blindado à vontade popular. A democracia vira uma forma vazia, útil apenas para validar um programa que já está previamente definido. O povo participa — desde que não interfira.

A esquerda precisa encarar essa engrenagem sem ilusões. Não basta combater as figuras do autoritarismo; é preciso desmontar o sistema que produz consentimento à desigualdade. Isso passa por disputar os sentidos da vida cotidiana, os valores coletivos, as linguagens do comum. Por rearticular solidariedades, desnaturalizar o sofrimento, criar brechas onde ainda haja escuta e desejo. A direita se equilibra no fio da navalha, oscilando entre o autoritarismo aberto e o controle tecnocrático. Não caminha às cegas — tateia com cálculo, acumula ensaio e erro, e testa os limites do possível político como quem sabe que o tempo, se não for tensionado, pende a seu favor. O que ela não pode encontrar pela frente é passividade disfarçada de lucidez e pragmatismo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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