"Hoje minha mãe morreu"
"O Estrangeiro" não oferece respostas prontas, mas sim um convite à reflexão sobre a vida, a morte, a liberdade e a responsabilidade individual
A frase impactante, a qual tomo emprestada para título deste artigo, é do livro "O Estrangeiro", de Albert Camus.
Lembrei do livro e da frase e resolvi compartilhar com o leitor, no contexto da morte da minha mãe, ela faleceu morreu dia primeiro de julho; ela sempre foi a centelha divina que nos manteve, e haverá de manter, unidos e amando uns aos outros e empáticos com a dor e com o sofrimento do outro.
Para quem não conhece o livro, ou não lembra, aí vai um resumo.
O romance explora a condição humana através da história de Meursault (que para muitos é o nome de uma vinícola e para outros uma comuna francesa) um homem que comete um crime aparentemente sem motivação e, em seguida, lida com as consequências em um mundo que o considera alheio e absurdo.
A frase título desse artigo é a primeira do livro; o protagonista recebe um telegrama informando sobre a morte da sua mãe e pensa: “hoje minha mãe morreu”.
A indiferença e falta de afeto são a marca do personagem.
Ele se aborrece com a notícia e com tanta coisa que deve fazer: conversar com o chefe sobre a morte da mãe; tomar um ônibus até o asilo onde ela morava; conversar com os funcionários do asilo e receber as condolências, etc, tudo muito entediante.
Ao ser levado ao corpo da mãe, o qual ele prefere não olhar diretamente, ele se mantém indiferente; o cortejo fúnebre parece infindável e aborrecido para ele, que se incomoda com tudo, especialmente com o namorado de sua mãe, Thomas Pérez, que chora muito; ele pensa “por que ele chora?”; depois do enterro, Mersault pega o ônibus de volta para casa, desejando dormir, absolutamente indiferente a tudo.
O livro é dividido em duas partes.
Na primeira, Meursault vive uma vida marcada pela indiferença e pela falta de envolvimento emocional. Ele relata a morte de sua mãe, o relacionamento com sua namorada Marie, e sua amizade com Raymond, um homem problemático. Um dia, em um contexto de tensão na praia, Meursault mata um árabe, sem que fique claro o motivo.
A segunda parte do livro acompanha o julgamento de Meursault. Apesar de não haver evidências de premeditação, a sociedade e a justiça o condenam não apenas pelo crime, mas por sua falta de emoção e aparente falta de remorso no enterro de sua mãe e no relacionamento com Marie.
O livro explora o conceito do absurdo, a alienação do indivíduo em relação ao mundo e a dificuldade de encontrar sentido na vida em um universo indiferente. Meursault é condenado à morte e, apesar de confrontado com a possibilidade de arrependimento e salvação, permanece fiel à sua visão de mundo, aceitando seu destino com resignação.
A alienação e desconexão de Meursault com a sociedade e com suas próprias emoções são chocantes; o permanente conflito entre liberdade e responsabilidade: o peso das escolhas e a necessidade de assumir as consequências delas; a inevitabilidade da morte e sua influência sobre a vida e as ações humanas e a condição humana são explorados por Camus; o livro explora a natureza complexa e contraditória da existência humana.
Como dito acima, lembrei desse livro no contexto da morte da minha mãe, a décima quinta filha, a caçula, a mimada, uma menina linda que foi mãe aos dezesseis anos; quando eu nasci ela era apenas uma adolescente, segura das suas escolhas; “crescemos juntos, aprendemos a ser adultos juntos”, dizia ela e ficamos idosos juntos.
Ela era socialista, “Lulista”, católica, devota de Nossa Senhora Aparecida; uma eterna indignada com as maldades do mundo; era contra qualquer guerra, ela tinha a enorme capacidade de colocar-se no lugar daqueles que sofrem e, dentro de toda sua limitação física e material, ajudou concretamente muitas pessoas; a vida da minha mãe foi o oposto do protagonista da história de Camus: ela nunca foi indiferente à vida e à realidade.
Se em "O Estrangeiro" de Albert Camus o autor denuncia o absurdo da existência humana e a aceitação da falta de sentido inerente à vida, a caminhada da mãe é prova de que a fé e o amor são poderosos e transformadores; ela sempre acreditou no sentido concreto da vida; que existimos para fazer o bem; minha mãe nunca acreditou na indiferença e apatia, assim como na morte como fim, pois a vida e a alma são eternas.
O romance culmina com a aceitação da morte por parte de Meursault, que encontra uma espécie de paz ao se dar conta da sua própria finitude, mas a morte, creiam, não é um fim trágico, mas sim um evento natural que faz parte da condição humana, como qualquer outro.
"O Estrangeiro" não oferece respostas prontas, mas sim um convite à reflexão sobre a vida, a morte, a liberdade e a responsabilidade individual. O livro nos leva a questionar nossas próprias concepções de sentido e a lidar com a incerteza da existência.
A moral da história de "O Estrangeiro" reside na aceitação do absurdo da vida, na importância da autenticidade e na necessidade de refletir sobre a nossa própria condição humana diante da inevitabilidade da morte.
Não sei se o leitor vai compreender o paralelo que tentei fazer, talvez nem eu saiba, e por isso, mais uma vez, recorro a uma homilia da missa matutina na Casa Santa Marta, na qual o Papa Francisco fez uma reflexão sobre o fim que aguarda cada pessoa, a morte, apresentando-a como o momento do abraço com o Senhor, é no que acredito.
Minha mãe que não conheceu o pai, o qual faleceu meses antes de seu nascimento, haverá de encontrá-lo para um abraço definitivo, necessário e afetuoso.
Essas são as reflexões.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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