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Sara York

Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior é bacharel em Jornalismo, licenciada em Letras Inglês, Pedagogia e Letras vernáculas. Especialista em educação, gênero e sexualidade, primeiro trabalho acadêmico sobre as cotas trans realizado no mestrado e doutoranda em Educação (UERJ) com bolsa CAPES, além de pai, avó. Reconhecida como a primeira trans a ancorar no jornalismo brasileiro pela TVBrasil247.

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Declaração do Rio dos BRICS e o desafio da inclusão da pauta LGBTI+ no Sul Global

A proposta por um sistema mais democrático e representativo, com maior participação de mulheres e países em desenvolvimento, é uma oportunidade histórica

Cúpula dos BRICS (Foto: Ricardo Stuckert / PR)

Em julho de 2025, os líderes dos países do BRICS - Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul - se reuniram no Rio de Janeiro para a XVII Cúpula, que incluiu a entrada de novos membros e parceiros, reforçando a relevância do bloco no cenário internacional. Um dos documentos centrais dessa cúpula, a Declaração do Rio de Janeiro, reafirma compromissos com direitos humanos, inclusão e uma governança global mais justa. a gente nao quer só comida, a gente comida, diversão e arte! Já diziam os Titãs! 

Mas, afinal, o que essa declaração significa para a população LGBTI+, frequentemente invisibilizada em negociações globais? Ao examinar o texto, encontramos passagens que, mesmo sem mencionar explicitamente as siglas LGBTI+, possuem potencial para ampliar a defesa dos direitos dessa população. Eu ouvi tudo nos últimos dias e pensei, enquanto trans e PcD, como isso me toca?

Quem são os "nós" e quem são os "eles"?

Em um país onde mais de 4 milhões de pessoas marcham pela diversidade na maior Parada LGBTI+ do mundo, mas permanecem invisíveis nas forças armadas, no serviço diplomático e nos espaços de decisão, precisamos perguntar: quando o discurso oficial fala em "nós", quem está sendo incluído nessa categoria? E quando se refere a "eles", a quem se está relegando a condição de ameaça ou exceção? O Brasil ainda opera sob uma lógica militarizada, onde corpos dissidentes - como os de travestis, mulheres trans, gays, lésbicas, pessoas não binárias - seguem fora das estruturas institucionais de poder e, frequentemente, fora das narrativas de pertencimento nacional. Ao refletir sobre os BRICS, sobre políticas globais e soberania, é essencial questionar: soberania de quem? Para quem? E com que corpos ela se constrói?

1.⁠ ⁠Direitos Humanos e o Combate à Discriminação: um compromisso indireto, mas potente

A Declaração enfatiza a palavra "discriminação" 13 vezes, abrangendo racismo, xenofobia, intolerância religiosa e o preocupante avanço do discurso de ódio e da desinformação. Embora a pauta LGBTI+ não apareça no texto, é impossível desassociar essa luta da necessária proteção contra transfobia, lesbofobia e homofobia.

Esse compromisso institucional abre espaço para que políticas públicas reconheçam a diversidade e protejam direitos, trazendo para o centro do debate temas que historicamente permanecem à margem.

Um exemplo concreto é a possibilidade de fortalecer programas como o "Brasil Sem LGBTIfobia", que, mesmo em contextos de conservadorismo institucional, pode se apoiar na retórica internacional para exigir a implementação de protocolos de acolhimento nos serviços públicos, como em hospitais e delegacias. Assim, uma travesti vítima de violência pode finalmente ser acolhida com respeito e dignidade no sistema de saúde ou segurança pública, respaldada por diretrizes multilaterais que condenam a exclusão em todas as suas formas.

2.⁠ ⁠Desenvolvimento social inclusivo: um caminho para a equidade

No documento, a ênfase na "redução das desigualdades", "erradicação da pobreza" e "crescimento inclusivo" é evidente. Populações LGBTI+ enfrentam opressões múltiplas - não apenas de gênero e sexualidade, mas também de raça, classe e outras dimensões sociais.

Garantir o acesso igualitário à saúde, educação, moradia e segurança alimentar para essas comunidades significa incorporar a interseccionalidade como fundamento das políticas públicas, uma agenda urgente no Brasil e no mundo.

Como exemplo, podemos citar a implementação de casas de acolhimento para pessoas LGBTI+ em situação de rua ou expulsas de casa, como ocorre frequentemente entre jovens trans. Políticas como essas, financiadas em âmbito municipal ou federal, podem se basear nos compromissos internacionais com o crescimento inclusivo para assegurar abrigo, reinserção educacional e acesso à qualificação profissional, rompendo o ciclo de exclusão social que atinge esses grupos de forma desproporcional.

3.⁠ ⁠Governança global: abrindo espaço para a representatividade

A proposta por um sistema internacional mais democrático e representativo, com maior participação de mulheres e países em desenvolvimento, representa uma oportunidade histórica para a inclusão de vozes LGBTI+ em espaços antes inacessíveis - como as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde e o Conselho de Segurança.

Ativistas e organizações ganham uma base legítima para pleitear participação e influência, fortalecendo a agenda internacional de direitos humanos.

Como exemplo prático, vale lembrar da atuação de redes como a ILGA (Associação Internacional LGBTI+), que hoje possuem status consultivo no Conselho Econômico e Social da ONU. Esse tipo de reconhecimento permite que uma travesti brasileira, por exemplo, discurse oficialmente em Genebra sobre a violência política que sofre no país, levando à mesa global as urgências locais. A pauta da governança inclusiva não é apenas técnica - é profundamente simbólica e reparadora.

4.⁠ ⁠Saúde: reconhecimento das vulnerabilidades específicas

A Declaração reafirma o compromisso com a eliminação de doenças socialmente determinadas e o acesso universal à saúde. Este é um campo estratégico para a população LGBTI+, que enfrenta desafios específicos, como o combate à epidemia de HIV/Aids, acesso a serviços de saúde transinclusivos e atenção à saúde mental.

A compreensão das desigualdades sanitárias cria a base para políticas públicas mais justas e eficazes.

5.⁠ ⁠Desinformação e discurso de ódio: um alerta para a proteção digital e social

A preocupação com o crescimento da desinformação e do discurso de ódio tem impacto direto na vida das pessoas LGBTI+, vítimas constantes de fake news, ataques virtuais e violência digital. Reconhecer essa ameaça é um passo essencial para construir marcos regulatórios que responsabilizem plataformas e protejam vidas, especialmente de grupos vulnerabilizados.

Um exemplo prático foi o ataque coordenado em 2025 pelo ex-presidente Donald Trump e sua administração contra pessoas trans nos Estados Unidos: ele assinou ordens executivas proibindo o acesso de menores a cuidados hormonais e cirúrgicos de afirmação de gênero, definiu gênero como "biológico e imutável", e entrou com ação judicial para banir atletas trans de competições femininas escolares. Essas medidas foram narradas sob o pretexto de "restaurar a verdade biológica", mas, na prática, criaram um ambiente institucional que legitima o preconceito, alimenta a desinformação e incentiva ataques digitais e offline. Em resposta, iniciativas como o Observatório da Internet e dos Direitos Humanos intensificaram o monitoramento de discursos de ódio e pressionaram por regulação que exija moderação rápida de conteúdos transfóbicos e proteção legal às vítimas.

Análise estratégica: oportunidades e desafios

Embora a Declaração do Rio do BRICS não mencione diretamente a sigla LGBTI+, a linguagem ampla e os compromissos assumidos oferecem pontos de entrada importantes para as reivindicações da comunidade.

No entanto, a efetivação desses compromissos depende de pressão política constante, advocacy qualificado e articulação entre movimentos sociais, governos progressistas e organismos internacionais.

Além disso, o bloco BRICS é heterogêneo, contando com países com legislações conservadoras, o que impõe desafios para a consolidação de políticas inclusivas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos.

Caminhos recomendados para avançar

Fortalecer a diplomacia feminista e LGBTI+ nos fóruns multilaterais para destacar a pauta como prioridade;

Produzir relatórios temáticos que evidenciem a situação da população LGBTI+ em termos de discriminação, saúde e direitos sociais;

Estabelecer parcerias com iniciativas do BRICS voltadas à saúde pública, mudanças climáticas e inclusão social;

Monitorar e apoiar candidaturas LGBTI+ em espaços decisórios globais para garantir voz e visibilidade.

A Declaração do Rio de Janeiro dos BRICS representa uma janela de oportunidade para a inclusão da pauta LGBTI+ na agenda global de direitos humanos e desenvolvimento. A grande tarefa que temos pela frente é transformar compromissos diplomáticos em políticas concretas, capazes de impactar a vida cotidiana das pessoas trans, negras, queer e de outras identidades marginalizadas no Sul Global.

Para que essa promessa se concretize, é preciso muita articulação, mobilização e coragem política - e a nossa voz deve estar presente e ativa em cada passo dessa trajetória. Finalizo o texto dizendo que essa carta ainda tem muito a nos ensinar…

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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