Camilo Irineu Quartarollo avatar

Camilo Irineu Quartarollo

Autor de nove livros, químico, professor de química, com formação parcial em teologia e filosofia.

108 artigos

HOME > blog

Chega de saudade

O mal de séculos em Piracicaba-SP tem sido o saudosismo, em vez de conservarmos nossos mananciais e tradições genuínas

(Foto: Gerada por IA/DALL-E)

Da beira se ouve as bolhas, as vozes dos peixes conversando. Ao menor ruído de passos mergulham rápido, os ouvidos do seu Elias podiam ouvir. Em menino, dizem, esse caipira ficava horas confabulando com os filhos das águas e, ainda, muito aprendeu com eles. Em adulto, Elias fez bonecos e os fincou em estacas pelas barrancas mais inacessíveis, pois queriam alguém guardando a orla.

Dizia o matuto que, ao verem de longe, iam pensar que “tinha gente” e assim não iam estragar o rio com sofás velhos, entulhos e má educação. Essas criaturas eram uma das paixões do seu Elias – figura icônica do Piracicaba, assim como Nhô Lica e muitos outros, a cujos devemos a percepção familiar dessas paragens. Eles cultuaram o valor de suas vidas e marcaram indelevelmente o chão úmido. O rio é mesmo uma “vista deslumbrante”, como diz a propaganda imobiliária. Entretanto, caipira não olha, vive o rio em todo o seu esplendor e grotas com sua rica flora e marcas rupestres.

Hoje, como dizem os caipiras, “o rio anda esquecido”, só querem fazer prédios e ganhar bufunfa em cima. Não respeitam a alma do lugar.

A área da orla, chã, é valorizada por pessoas conscientes, mas outros preferem fazer um poema saudosista, de chapéu, e fogem da luta como bagre ensaboado. O mal de séculos em Piracicaba-SP tem sido o saudosismo, em vez de conservarmos nossos mananciais e tradições genuínas. Depois fica o quê? O saudosismo choroso, o rio de lágrimas salgadas, sem peixes, sem aconchego, sem vida onde tudo começou.

Devemos aprender com os filhos das águas, os quais sobem com esforço máximo na Piracema e contra toda a sorte, mesmo de ser bicado por uma ave pernalta, desovar e cumprir nosso destino. Elias dos bonecos aprendeu. Quando vivo, mesmo sem o apelo climático explícito, seu Elias tinha consciência ambiental, amor pela natureza, solidariedade com os vizinhos, amigos e crianças.

Essa luta não é de esquerda ou de direita, é das duas margens unidas pelo nosso maior bem de vida fluida, amanhã pode ser tarde. Têm sido recorrentes as destruições de orlas, das margens de rios e mar, em cidades importantes do país. Depois não adianta sentir saudade, a reversão é muito difícil e eivada de interesses econômicos. O bem espiritual é destruído e fica a saudade.

Hoje, público leitor, se ouvirem o murmurejar do Salto, as vozes borbulhantes n’água de algum peixinho recém-nascido, não endureçam os corações como pedra. Saudosistas, essas águas não são panorâmicas somente, mas realidades, percebidas, tocadas, compreendidas – isso não pode ser comprado. De que se aproveita a vista distante e triste, pelas janelas envidraçadas num apartamento alto onde a vida solitária não flui e se esvai. Embaixo, no chão de beira, o rio faz festa e toca-nos a alma, isso é real. Por isso que, depois de tantas enchentes, os ribeirinhos sempre voltam a habitar a margem e, mesmo depois de tantas mortes acidentais com a lendária moça do rio, continuam a ir às águas, navegar, nadar, viver, morrer e pescar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Rumo ao tri: Brasil 247 concorre ao Prêmio iBest 2025 e jornalistas da equipe também disputam categorias

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Cortes 247

Carregando anúncios...
Carregando anúncios...