Bem-vindos a 2026: a batalha pelas redes, o novo front político do governo Lula
A dinâmica interinstitucional recente entre Executivo e Legislativo evidencia um processo de desestabilização sistêmica do presidencialismo de coalizão
Por Ana Beatriz Magno - Jornalista Doutora pela Universidade de Brasília
Mayra Goulart - Professora de Ciência Política da UFRJ
Paulo Gracino Jr. - Professor de Sociologia da UNB
Raul Paiva - Mestrando PPGSA/UFRJ
A dinâmica interinstitucional recente entre Executivo e Legislativo evidencia um processo de desestabilização sistêmica do presidencialismo de coalizão em sua configuração histórica. Essa erosão paradigmática transcende meras flutuações conjunturais, manifestando transformações estruturais profundas no desenho institucional que reconfiguraram radicalmente os incentivos à cooperação interpoderes e comprometeram a capacidade coordenadora do Executivo. A análise das controvérsias orçamentárias recentes se revela como expressão sintomática de um fenômeno mais amplo: a antecipação do ciclo eleitoral e a consequente desagregação dos arranjos pactuados que, ainda que precariamente, asseguravam condições mínimas de governabilidade.
Desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 86/2015, e de forma mais acentuada após a PEC do Orçamento Impositivo (nº 100/2019) – que ampliaram exponencialmente as dotações para emendas parlamentares, particularmente as de relator (RP9) – operou-se uma reengenharia dos fluxos decisórios orçamentários. Essa reconfiguração institucional garantiu aos parlamentares acesso direto e automático a parcelas substantivas da peça orçamentária, reduzindo assim sua dependência das negociações com o Executivo e elevando significativamente os custos transacionais para manutenção de uma base governista coesa.
Esse novo paradigma minou o princípio basilar do presidencialismo de coalizão: a simbiose entre apoio político e acesso privilegiado a recursos estatais e posições institucionais. Como salienta Maria Hermínia Tavares (2023) em análise recente, "coalizões congressuais heterogêneas tornam-se progressivamente mais difíceis de disciplinar – particularmente quando o governo perde instrumentos para captar o apoio de parlamentares dispostos a relativizar suas convicções conservadoras em troca de incentivos materiais".
Nesse contexto institucional transformado, o cálculo político dos parlamentares passou a ser predominantemente orientado por expectativas eleitorais prospectivas. Em um cenário de isolamento político e baixa aprovação do Executivo, os incentivos para cooperação diminuem drasticamente. Se em períodos anteriores a popularidade presidencial funcionava como bem relacional transferível aos aliados, na atual configuração o Executivo não oferece retornos eleitorais compensatórios que justifiquem lealdade política. Considerando que o Legislativo igualmente enfrenta elevados índices de rejeição junto ao eleitorado, a adoção de posturas oposicionistas emerge como estratégia racional preferencial para parlamentares em busca de recondução.
A Deterioração da Relação Executivo-Legislativo e seus Desdobramentos
Os dados da pesquisa Quaest revelam um cenário preocupante para o governo, marcado pelo crescente distanciamento entre o Executivo e o Legislativo. Entre os deputados independentes, a avaliação negativa do governo subiu de 31% para 44%, enquanto a percepção negativa sobre a relação com o Congresso saltou de 45% para 65%. A expectativa de que o governo consiga aprovar sua agenda no Legislativo também piorou significativamente, com 73% dos parlamentares independentes demonstrando ceticismo – um aumento de 27 pontos percentuais em relação ao levantamento anterior. A política econômica, por sua vez, é vista como equivocada por 81% desses deputados, contra 61% anteriormente.
Esse movimento de desgaste ocorre em um contexto paradoxal. Embora os indicadores econômicos recentes apontem para uma leve recuperação, e questões que antes pressionavam a popularidade do governo – como o escândalo do Pix e a alta da inflação – tenham perdido intensidade, o Congresso parece estar se antecipando ao ciclo eleitoral. A pouco mais de um ano das eleições presidenciais, os parlamentares começam a se reposicionar estrategicamente, com muitos enxergando na oposição uma plataforma mais vantajosa para 2026.
Esse reposicionamento se dá em um ambiente institucional já marcado por tensões estruturais. As investigações sobre emendas parlamentares lideradas pelo ministro Flávio Dino criam atritos com práticas políticas consolidadas, enquanto a composição do Congresso – eleito em 2022 sem maioria para o PT ou suas pautas progressistas – impõe limites objetivos à capacidade de articulação do governo.
O impasse fiscal talvez seja a expressão mais clara dessas tensões. O governo, eleito com promessas de redução das desigualdades, vê-se pressionado a ampliar gastos sociais enquanto o Congresso exige controle rígido das contas públicas. A tentativa do Executivo de aumentar a arrecadação, especialmente através da taxação de setores mais abastados, esbarra na resistência legislativa. Paradoxalmente, o mesmo Congresso que prega responsabilidade fiscal aprovou a correção da tabela do Imposto de Renda sem apresentar alternativas para compensar a perda de receita – um movimento que pode gerar um rombo de até R$ 40 bilhões nos cofres públicos.
Essa dinâmica revela uma assimetria institucional profunda. Enquanto o Executivo é cobrado por resultados de longo prazo e políticas estruturais, o Legislativo opera com uma lógica de curto prazo, apropriando-se de parcelas crescentes do orçamento através de emendas impositivas sem a correspondente prestação de contas sobre seus impactos fiscais. Com a antecipação da disputa eleitoral e a deterioração da base de apoio governista, essa contradição tende a se aprofundar, limitando progressivamente a capacidade do governo de aprovar sua agenda e implementar políticas mais ousadas.
O cenário que se desenha é de crescente paralisia decisória e intensificação dos conflitos interinstitucionais. A menos que ocorra uma recuperação econômica robusta e amplamente percebida pela população – capaz de realinhar os incentivos políticos dos parlamentares –, o governo enfrentará dificuldades cada vez maiores para governar até o final do mandato. Nesse contexto, a relação com o Congresso deve permanecer tensa e instável, com reflexos diretos na capacidade de implementação da agenda governamental.
A Crise Multidimensional da Governança e os Limites da Estratégia Redistributiva
O governo enfrenta um dilema estrutural que transcende a mera disputa por pautas específicas: o Legislativo opera cada vez mais sob uma lógica eleitoral autônoma, desvinculada de lealdades governativas tradicionais. Esse realinhamento incentiva posturas de confronto e estratégias obstrucionistas, minando os mecanismos históricos de barganha política. A recente judicialização de questões fiscais – como no caso do IOF – simboliza o colapso progressivo dos canais institucionais de negociação, substituídos por uma dinâmica de conflito aberto entre os Poderes.
Diante desse bloqueio, o Executivo tenta reconstruir sua base de apoio através de uma narrativa que resgata a clássica clivagem "ricos versus pobres". Essa guinada discursiva, evidente em pronunciamentos públicos e materiais de comunicação oficial, busca reposicionar o governo como defensor intransigente da tributação progressiva e dos programas sociais. A estratégia visa criar um novo eixo de polarização capaz de mobilizar eleitoralmente setores populares, diferenciando claramente a administração atual de seus opositores.
A crise de governabilidade, portanto, manifesta-se em três dimensões interligadas:
- Institucional: com a erosão dos instrumentos orçamentários de barganha e a fragmentação da base de apoio no Congresso;
- Simbólica: com o esvaziamento da linguagem redistributiva como eixo mobilizador;
- Temporal: com a antecipação do ciclo eleitoral acelerando a desagregação de alianças.
Esse cenário configura uma armadilha política complexa. A judicialização crescente das disputas fiscais e a radicalização dos posicionamentos congressuais não apenas paralisam a agenda governamental, mas também corroem os fundamentos do pacto democrático. À medida que o Executivo perde capacidade de mediação política e legitimidade discursiva, abre-se espaço para soluções autoritárias que prometem "quebrar o impasse" – um risco que transcende em muito os debates sobre política econômica e atinge o cerne da ordem constitucional.
A superação desse quadro exigiria não apenas ajustes táticos, mas uma reinvenção da linguagem política progressista, capaz de dialogar com as transformações culturais das classes populares sem abandonar os princípios redistributivos. O desafio é articular uma narrativa que combine justiça social com autonomia individual, superando a falsa dicotomia entre Estado e mercado que domina o imaginário contemporâneo. Sem essa reinvenção, o governo permanecerá encurralado entre um Legislativo hostil e uma sociedade civil cada vez mais refratária às suas propostas.
A Reconfiguração Estratégica do Governo e os Dilemas da Oposição
O atual cenário político revela um profundo descompasso entre as prioridades do Executivo e a orientação majoritária do Legislativo. Enquanto o governo insiste em uma agenda transformadora centrada na ampliação de direitos, no fortalecimento do Estado e na redistribuição de renda, o Congresso manifesta preferências claramente conservadoras – tanto no plano econômico, com sua ênfase na austeridade fiscal e em benefícios setoriais, quanto no âmbito social, resistindo a avanços na equalização de desigualdades estruturais. Como observou Maria Hermínia Tavares, esse desalinhamento não resulta de distorções do sistema eleitoral, mas reflete as próprias inclinações do eleitorado brasileiro.
Diante desse impasse, o governo parece estar reorientando sua estratégia, antecipando elementos da campanha eleitoral de 2026. O PT retomou recentemente sua tradição de comunicação política, lançando peças publicitárias que enfatizam o combate às desigualdades e o enfrentamento aos privilégios das elites econômica e política. Essa guinada discursiva, que havia sido atenuada em 2022 em favor da defesa da democracia e da formação de uma frente ampla, sinaliza uma mudança significativa na abordagem governamental.
Com o esgotamento das possibilidades de negociação com um Congresso refratário, o partido parece estar optando por uma estratégia de mobilização popular em torno de pautas como a taxação dos super-ricos, a limitação dos supersalários no setor público e a ampliação da isenção do Imposto de Renda. Esse movimento busca simultaneamente cumprir promessas de campanha e reconquistar setores estratégicos do eleitorado, particularmente entre as famílias com renda de até dez salários mínimos – grupo que combina preocupações com justiça social e rejeição aos privilégios da classe política.
Essa reorientação implica um cálculo eleitoral preciso. Ao priorizar pautas redistributivas mais ousadas, o PT parece disposto a abrir mão de parte do apoio entre estratos mais abastados – que em 2022 o apoiaram principalmente como reação à ameaça autoritária – para consolidar uma base mais ampla e estável entre os segmentos populares e médios. Essa mudança reflete uma leitura realista do eleitorado brasileiro: enquanto as classes altas representam uma parcela numericamente pequena (embora institucionalmente influente), os estratos médios e baixos concentram o potencial decisório nas urnas.
O reposicionamento do governo coloca a oposição em uma situação delicada. Muitas das pautas agora enfatizadas pelo Executivo – como o combate aos privilégios e a defesa de uma tributação mais justa – integram também o discurso oposicionista. Esse cenário cria um dilema estratégico para os partidos de oposição: como bloquear as iniciativas governistas sem parecer trair as expectativas populares por maior justiça social? A resposta a esse desafio será crucial para definir os contornos da disputa eleitoral que já se anuncia.
Nesse contexto, o período que antecede 2026 promete ser marcado por tensões crescentes. De um lado, um governo que busca se reposicionar como defensor intransigente dos interesses populares; de outro, uma oposição dividida entre a necessidade de diferenciar-se do Executivo e o risco de alienar setores importantes do eleitorado. O resultado desse embate dependerá, em grande medida, da capacidade de cada campo em articular suas propostas com as demandas e os valores de uma sociedade profundamente transformada nos últimos anos.
A Reconfiguração Discursiva e seus Desafios na Conjuntura Atual
A guinada estratégica do governo rumo à clivagem "ricos versus pobres" representa uma tentativa de reordenar os termos do debate público, resgatando o núcleo simbólico tradicional do petismo. Essa inflexão se manifesta claramente na comunicação oficial recente, que passou a enfatizar temas como a taxação de grandes fortunas, a crítica aos privilégios no funcionalismo público e a defesa intransigente de programas sociais. Ao reposicionar a desigualdade como eixo central da disputa política, o governo busca transferir o campo de batalha das negociações institucionais – cada vez mais estéreis – para o terreno da mobilização simbólica, onde historicamente obteve seus maiores sucessos eleitorais.
Contudo, essa estratégia enfrenta obstáculos profundos no atual contexto sociocultural. As transformações nas subjetividades políticas das classes populares nas últimas décadas criaram um cenário paradoxal. Muitos dos beneficiários objetivos das políticas redistributivas hoje rejeitam a identidade de "pobres" e desconfiam da intervenção estatal, influenciados por valores neoliberais que glorificam o empreendedorismo individual e estigmatizam a dependência de programas sociais. Essa mudança é alimentada por múltiplas fontes – desde a proliferação de conteúdos de autoajuda nas redes sociais até a pregação neopentecostal que associa prosperidade à fé individual.
O resultado é um curioso fenômeno de dissonância cognitiva: setores que dependem materialmente da ação estatal muitas vezes apoiam discursos que condenam essa mesma intervenção. Essa contradição se agrava pela fluidez contemporânea das identidades de classe, cada vez mais atravessadas por lealdades religiosas, valores morais e adesões subjetivas que não se alinham automaticamente com a posição econômica objetiva.
O desafio governamental, portanto, vai além da simples reativação de velhas dicotomias. Para que a clivagem distributiva recupere poder mobilizador, precisa ser ressignificada em termos que dialoguem com as novas subjetividades populares. Isso exigiria, por exemplo, articular a crítica aos privilégios com a valorização do trabalho (em oposição à renda não laboral), ou vincular a defesa dos serviços públicos ao ideal de autonomia individual (e não à dependência estatal).
A antecipação do cenário eleitoral torna essa tarefa ainda mais urgente e complexa. Com os canais tradicionais de mediação política enfraquecidos e a base social tradicional do PT em transformação, o governo se vê pressionado a reconstruir sua conexão com o eleitorado em condições particularmente adversas. O risco é que o discurso redistributivo, sem as devidas atualizações, acabe soando como anacrônico para setores que, embora necessitem das políticas públicas, já não se reconhecem na linguagem que as fundamenta.
Nesse contexto, a eficácia da nova estratégia governamental dependerá menos da consistência programática em si – que mantém seu mérito técnico – e mais da capacidade de traduzi-la em termos que ressoem nas experiências cotidianas e nas autoimagens de seu público-alvo. A disputa pelo imaginário social tornou-se, assim, o campo decisivo onde se jogará boa parte do sucesso ou fracasso dessa guinada discursiva.
A Radicalização Discursiva e a Batalha pelas Redes: O Novo Front Político do Governo Lula
O terceiro mandato de Lula alcançou um momento decisivo de transformação em sua estratégia comunicacional. Após um período marcado por relativa contenção no discurso público, o governo adotou postura mais agressiva nas redes sociais, apropriando-se de instrumentos até então dominados pela direita bolsonarista. Os vídeos recentemente veiculados pelo PT, que expõem de forma crua o contraste entre os privilégios das elites e as carências das classes populares, representam não apenas uma mudança de tom retórico, mas uma reorientação profunda na forma de conceber o embate político na era digital.
Essa guinada estratégica, articulada pela equipe de comunicação liderada por Sidônio Palmeira, busca enfrentar dois desafios estruturais que há muito limitavam a capacidade de diálogo do governo com a sociedade. Por um lado, pretende romper o cerco das bolhas algorítmicas que sequestraram o debate público nos últimos anos, ecossistemas digitais onde a direita soube como nenhum outro ator cultivar narrativas distorcidas e sentimentos de ódio político. Por outro, supera a moderação discursiva autoimposta por setores da esquerda, que durante anos subestimaram o potencial das plataformas digitais como arena decisiva para a disputa hegemônica.
A estratégia em curso é clara em seus fundamentos: aplicar ao campo progressista a eficácia comunicativa que caracterizou o bolsonarismo, porém invertendo radicalmente seu conteúdo ideológico. Enquanto a extrema-direita disseminava desinformação e teorias conspiratórias, o governo agora busca semear dados concretos sobre desigualdade social e privilégios de classe. Essa aposta na chamada "radicalização democrática" do debate – usando ferramentas similares, mas com propósitos diametralmente opostos – pode marcar um ponto de inflexão na política brasileira contemporânea.
Contudo, essa ousada jogada comunicacional não está isenta de riscos e contradições. A credibilidade das mensagens governamentais ainda é comprometida por peças que revelam artificialidade e erros técnicos elementares, como legendas mal editadas que invadem a imagem, detalhes que podem minar a eficácia do conjunto. A opção pelo maniqueísmo simplificador do "pobres versus ricos", embora possa se mostrar mobilizadora no curto prazo, esbarra na complexidade das identidades políticas que caracterizam o eleitorado brasileiro contemporâneo, cada vez mais atravessado por lealdades múltiplas e contraditórias.
A contradição mais profunda talvez resida no fato de que, ao adotar as regras do jogo comunicacional moldadas pela direita, o governo corre o risco de reforçar precisamente a lógica binária e reducionista que tanto criticou no passado. O desafio que se coloca é como manter a radicalidade democrática do discurso sem cair nos mesmos vícios de simplificação que caracterizaram o bolsonarismo. A resposta a esse dilema pode determinar não apenas o sucesso da atual estratégia governamental, mas o próprio futuro da linguagem política progressista em tempos de redes sociais e algoritmos.
Nesse contexto, a decisão do governo de "sair das cordas" e ocupar agressivamente o espaço digital representa mais do que uma tática eleitoral – configura uma tentativa de reescrever as regras do jogo comunicacional que tem dominado a política brasileira desde pelo menos 2013. Se conseguirá superar as armadilhas inerentes a essa empreitada, só o desenrolar dos próximos meses poderá dizer. Mas o fato de ter decidido entrar nesse jogo, após anos de hesitação, já altera significativamente o tabuleiro político nacional.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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