Argentina sob Milei: Conservadorismo Ascendente, Desmonte do Saber e Repressão à Diferença
A vitória de Milei, impulsionada por um discurso anti-establishment e promessas de reformas radicais, chega num momento de profunda crise
Rio de Janeiro, Brasil — A eleição de Javier Milei na Argentina marca uma guinada significativa no cenário político e econômico do país, ecoando uma onda conservadora que se observa em outras nações do globo. O fenômeno, carregado de complexidades e potenciais impactos em diversas esferas, levanta questões importantes sobre o futuro da Argentina, sua relação com o Brasil e o rearranjo de forças no cenário internacional.
A Argentina de Milei: Entre a Promessa de Ruptura e o Risco de Regressão
A vitória de Milei, impulsionada por um discurso anti-establishment e promessas de reformas radicais, chega num momento de profunda crise. A inflação galopante, a pobreza crescente e a desconfiança nas instituições pavimentaram o caminho para um candidato que propõe a dolarização da economia e cortes brutais nos gastos públicos. Tais medidas, embora sedutoras para parte do eleitorado, não estão isentas de consequências severas: perda de soberania monetária, colapso dos serviços públicos e aumento da desigualdade social.
Mas há uma dimensão ainda mais alarmante emergindo: o ataque sistemático à produção de conhecimento, especialmente nas áreas das humanidades, ciências sociais e estudos críticos.
O Desmonte da Ciência e o Silenciamento da Diferença
Em pronunciamento recente, um professor argentino não-binário, membro de um grupo de pesquisa que investiga temas ligados ao pós-humano, aos efeitos das mudanças climáticas e à vida em tempos de colapso, relatou um ataque direto do governo Milei:
O porta-voz do governo foi pras redes atacar um projeto de pesquisa, dizendo que não tinha utilidade nenhuma pra sociedade. Mas esse projeto é resultado do trabalho sério de um grupo com professores, pesquisadores e estudantes que estão pensando temas urgentes — tipo o que é viver num mundo em colapso. Isso faz parte de uma campanha pra desvalorizar as humanidades, sufocar o pensamento crítico e silenciar a diferença. Querem empurrar goela abaixo ideias colonizadas, racistas, que não aceitam diversidade nenhuma. A gente tá sendo atacado por ser professor, pesquisador, por ser trans, preto, deficiente, pobre. É um governo que tá machucando muita gente.
Esse testemunho potente escancara o projeto autoritário em curso: não se trata apenas de uma disputa econômica, mas da tentativa de apagar corpos, saberes e epistemologias que desafiem o modelo dominante. A política de Milei promove um apagamento ativo da pluralidade, do pensamento divergente e das vozes subalternizadas.
A Psicanálise, o Desejo e o Silenciamento Conservador
O clima político não atinge apenas a esfera econômica. Há sintomas psíquicos que merecem atenção. Um dado curioso e revelador: a possível mudança na liderança do ranking global de consumo de pornografia, que historicamente teve o Brasil no topo. Com a ascensão da direita conservadora na Argentina e o endurecimento dos discursos de repressão moral, há indícios de deslocamento dos mecanismos de sublimação social. Sob o prisma psicanalítico, o consumo de pornografia pode expressar ansiedades, deslocamentos do desejo e estratégias de compensação frente à frustração social e política.
A repressão do desejo — sexual, epistêmico, afetivo — não é apenas simbólica: ela se traduz na tentativa de apagar sujeitos dissidentes do espaço público, seja através de cortes orçamentários, censura, omissão de convites em congressos ou o silenciamento deliberado de vozes trans, negras e indígenas.
Como denunciou o mesmo professor argentino:
“Eles nos matam no silêncio, na negação da oportunidade. É aí que nos matam. Não nos chamam para colóquios, congressos, jornadas. Silenciam Jário Carioca, ignoram Nova Iguaçu, mas trazem gente do Marrocos para debater segregação no campo lacaniano. Não querem nos ouvir. Porque não estão acostumados com quem diz: essa merda tá errada.”
Triunvirato Conservador: Argentina, EUA e Brasil
A convergência entre Milei na Argentina, Bolsonaro no Brasil e um possível retorno de Trump nos EUA configura um triunvirato conservador com sérias implicações globais. Nacionalismo, racismo, anticientificismo e autoritarismo aparecem disfarçados de “liberdade econômica”, enquanto estruturas democráticas são corroídas por dentro.
O enfraquecimento de organismos multilaterais, o negacionismo climático e os ataques à diversidade se entrelaçam em uma lógica global do ressentimento. O desejo de controle se volta contra os que pensam diferente, amam diferente, vivem fora da norma.
Entre BRICS e Balas: Contradições e Reconfigurações Geopolíticas
A reunião dos BRICS no Brasil expõe ainda outra tensão: como manter uma frente de cooperação entre países com modelos tão distintos? A Argentina de Milei, embora flertasse com a entrada no bloco sob o governo anterior, hoje prioriza relações com os EUA e rejeita o que chama de “socialismo do século XXI”. Essa ambiguidade revela a instabilidade da atual ordem mundial, onde até alianças estratégicas são impactadas por decisões ideológicas radicais.
O cenário que se desenha na Argentina sob Milei não é isolado. Ele ecoa no Brasil, nos EUA, na Hungria, e em tantos outros contextos onde a diferença é tratada como ameaça. Mas também se fortalece nas resistências.
Como nos lembra o professor argentino, pensar é, hoje, um ato de coragem. Estudar, ensinar, existir com autonomia intelectual e de gênero, é uma forma de insurgência.
Contra a necropolítica e a necrofilantropia, resta-nos a produção radical de vida — e de pensamento.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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