Boaventura de Sousa Santos avatar

Boaventura de Sousa Santos

Sociólogo português

126 artigos

HOME > blog

A violência do cancelamento

Boaventura de Sousa Santos relata o impacto das acusações informais e da censura institucional que ameaçam apagar sua trajetória intelectual e política

(Foto: Gerada por IA/DALL-E)

Em 7 de abril de 2023, tomei conhecimento da existência de um capítulo de livro em que eram feitas graves acusações contra mim, outros investigadores do CES e contra o próprio CES como instituição. Eu estava prestes a embarcar para o Chile e foi lá que tomei ciência da magnitude do impacto público que o capítulo estava a causar. A exposição midiática atingiu seu auge na semana de 10 de abril. Foi nesse período que teve início uma onda de cancelamentos que persiste até hoje e que ameaça sepultar o trabalho de toda uma vida, sem que tenha havido qualquer denúncia formal perante um tribunal.

As acusações restringem-se à imprensa e aos meios de comunicação social. Existe um relatório elaborado por uma Comissão Independente do CES que não inclui o meu nome e, se há denúncias concretas contra mim, o acesso a elas me foi negado. Apresentei-me voluntariamente ao Ministério Público para ser investigado. Tive de iniciar uma ação civil para proteger o meu bom nome — única via possível para ser submetido a um processo judicial —, mas esse processo está paralisado. Só me resta denunciar o cancelamento a que fui submetido, para que quem veja possa julgar por si mesmo.

A seguir, apresento alguns exemplos do cancelamento de que venho sendo vítima desde abril de 2023, decorrentes de denúncias falsas das quais só tive conhecimento pela imprensa. Tais denúncias jamais foram objeto de acusação judicial, tampouco foram provadas, e nunca me foi dada a oportunidade de defesa.

Resumo - Entre os inúmeros cancelamentos, destaco que alguns distribuidores se recusaram a comercializar meus livros. A Editora Almedina, com a qual mantenho um contrato de exclusividade para publicações em português, reteve dois manuscritos meus — um deles já publicado em inglês — por receio de que não sejam comercialmente viáveis. Duas editoras exigiram que autores retirassem os prefácios que me haviam solicitado e que eu já havia escrito.

Na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, assim como em algumas universidades do Brasil, meus livros foram retirados da bibliografia obrigatória, e os estudantes foram incentivados a não citar o meu trabalho. Na Colômbia, uma editora mandou suprimir meu nome da capa de um livro do qual eu era autor principal e organizador, mesmo após a impressão da capa. Pelo menos uma tese de doutorado sobre a minha teoria foi abandonada, e o autor forçado a mudar de tema.

Tenho 21 títulos de doutor honoris causa. Havia mais alguns em preparação, mas todos foram cancelados. Eu havia sido convidado para inaugurar o congresso de sociologia do mundo árabe de 2023, sendo o primeiro europeu a receber tal distinção. O convite foi cancelado. Fui expulso do Tribunal Universal dos Direitos da Natureza, do qual fui um dos fundadores. Fui suspenso do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO), que dois anos antes havia publicado uma antologia da minha obra com mais de mil páginas.

Trata-se de uma verdadeira “morte civil”, que inclusive motivou um estudo comparativo com outros casos semelhantes em Portugal. O referido estudo enfatizava a politização do meu caso, destacando como a imprensa portuguesa concentrou sua atenção quase exclusivamente em minha figura. As denúncias foram utilizadas como instrumento de ataque à esquerda política e ideológica, retratando-me como símbolo da "hipocrisia da esquerda moralista", ironizando com frases como "o guru do progressismo" ou "o profeta do Sul".

Além disso, o artigo sublinha que o meu caso foi utilizado para "desacreditar não só a pessoa, mas também o pensamento crítico e os movimentos que ele defende", "desvirtuando a discussão de fundo" e servindo como instrumento para "ajustar contas políticas". (https://www.mdpi.com/2673-5172/6/2/60)

A seguir, apresento alguns exemplos documentados.

CLACSO - No dia 15 de abril de 2023, a CLACSO emitiu o seguinte comunicado:

print

CES - O cancelamento foi imediato. A investigadora Marta Araújo afirmou com indisfarçável orgulho, e perante testemunhas (uma delas autoriza-me a mencionar seu nome, o antigo diretor do CES, António Sousa Ribeiro), que fora ela a fonte anônima dos artigos de Fernanda Câncio no Diário de Notícias, a partir do capítulo em que eram difamados não apenas três investigadores do CES, mas a instituição como um todo.

Essa investigadora e sua colega Silvia Maeso, já em 2014, diziam na Cova da Moura (bairro periférico de Lisboa onde trabalhávamos no projeto ALICE) que era tanto o dinheiro destinado aos projetos do Boaventura que talvez viesse da CIA; que o Boaventura escrevia muitos livros porque eram os assistentes que os redigiam; e que ele não se interessava pelo racismo, apenas pelo colonialismo (testemunha proposta à Comissão Independente, que pede anonimato). No entanto, quando, em 2015, os companheiros da Cova da Moura foram vítimas de brutalidade policial, quem os acompanhou ao Parlamento para protestar contra a violência policial fui eu.

No cancelamento dentro do CES, participaram ativamente muitos outros investigadores e investigadoras. Entre muitas outras manifestações já referidas no documento “Porque me demiti do CES” (que pode ser consultado em: https://aviagemdosargonautas.net/2025/05/02/depoimento-contextual-por-boaventura-de-sousa-santos/; https://aviagemdosargonautas.net/2025/05/13/porque-me-demiti-do-ces-parte-2-por-boaventura-de-sousa-santos/), destaco o zelo de um investigador recém-integrado ao CES, Gustavo Garcia, que acrescentava, por sua própria iniciativa e para circulação interna no CES, na notícia de um fórum virtual cujo título original era genérico e não mencionava meu nome:

print
"O resultado do trabalho que vários GTs têm feito na sequência das denúncias sobre Boaventura de Sousa Santos".

Na época, eu ainda era diretor emérito do CES, apenas auto-suspenso para facilitar as averiguações. Esse e-mail foi posteriormente retirado pela direção.

print

Conferências

print

print

print

print

Print

print

print

print

Tribunal Universal dos Direitos da Natureza - Em 27 de março de 2024, fui demitido do Tribunal Universal dos Direitos da Natureza, que ajudei a fundar, por meio de um documento que ficará na história vergonhosa dos processos inquisitoriais naturalizados pelo #MeToo. Esse documento é ilustrativo de como, mesmo em democracia, é possível transformar denúncias jamais confrontadas em qualquer fórum com provas da sua falsidade em condenações “fundadas em provas evidentes”. Isso acontece, sobretudo, em ONGs internacionais financiadas pelo Norte Global (majoritariamente os EUA, como USAID, Fundação Ford e a Open Society de George Soros).

print

print

print

print

Livros censurados - A censura do meu nome como organizador de um livro por parte da editora colombiana (Siglo del Hombre, hoje apenas Siglo) foi outro episódio. Fui colocado diante do dilema: insistir na inclusão do meu nome e o livro não ser publicado, ou aceitar a retirada do meu nome para que a publicação ocorresse. Como meu compromisso era com a luta dos jovens revoltosos de Cali, e com os colegas que aceitaram escrever capítulos — incluindo meus dois jovens co-organizadores (uma ex-posdoutoranda e um doutorando) — senti-me forçado a aceitar a censura.

A extrema-direita e a “verdadeira” esquerda - Pouco depois do início do meu cancelamento, Mitha Gabriel Ribeiro, então deputado do partido Chega, afirmava na Comissão de Educação e Ciência que o “CES era um centro de pensamento esquerdista” e acrescentava, com satisfação, que “o caso está já quase resolvido”.

A “verdadeira” esquerda também se esmerou nos ataques, sobretudo após a publicação da sexta carta das supostas vítimas.

print

print

Os extremos tocam-se, mas há uma importante diferença neste caso. Quando a extrema-direita mata por linchamento, a morte é homicídio. O homicídio fortalece-a. Quando a extrema-esquerda mata por linchamento, a morte é suicídio. O suicídio enfraquece-a. Os resultados eleitorais provam-no.

Prefácios censurados - Prefácio ao livro Fronteira-Matria, de autoria de dois rappers, publicado por uma editora portuguesa (Editora Urutau, 2023)

Prefácio para André Neves e Vinicius Terra - Tenho o gosto de vos apresentar um livro escrito a quatro mãos. Conheço e admiro há anos André Neves, enquanto rapper Maze, e fomos parceiros em vários eventos culturais. A ele junta-se, neste livro, Vinicius Terra, cuja poesia também tenho o gosto de vos apresentar. Neste livro, mergulhamos no que há de mais profundo e rico no mundo do rap: a capacidade de criar beleza e arte a partir da denúncia sem compromisso da injustiça, da exclusão, do silenciamento e da discriminação, em que as nossas sociedades contemporâneas parecem estar cada vez mais viciadas.

São duas vozes distintas em seus estilos poéticos, mas convergentes na temática. Às vezes faz lembrar a poesia à desgarrada, com profunda tradição tanto no interior de Portugal como no Nordeste do Brasil. É um diálogo transatlântico, um livro de travessias pelo triângulo histórico formado por Portugal, Brasil e países africanos de língua oficial portuguesa. Travessias que também são fronteiras.

Diz Maze:

“mas o nosso plano é o mar”

E responde Terra:

“Vá que dessa vez os donos sejamos nós?! É um belo plano”

Continua Terra:

“Porque no fundo é só o mar / somente o mar / inventaremos / uma Epopeia / com o título / ‘Pra Lusofonia Nasce um Novo Dia’”

E logo Maze responde, bem consciente do seu lugar de fala, do seu lugar de rap:

“Caro mestre trovador / por aqui as agruras da vida sulcam-nos a todos / mas talvez seja ofensivo lamentar-me quando sou / homem / branco / heterosexual / trabalhador / letrado / saudável”

E o livro segue assim, num ritmo envolvente de dores e de esperança, de pesadelos e de sonhos, onde não faltam evocações que nos são caras — de Zeca Afonso a Cesária Évora, de Zé Mário Branco aos Racionais e ao funk carioca. Este livro faz do luto uma luta, e da luta, a utopia de uma sociedade mais justa. E, neste caso, a homenagem devida é ao rap.

Como escreve Terra:

“posto isto até aqui o rap nos salvou até aqui o rap nos safou daqui por diante… Continua R.E.P. Ritmo E Poesia ritmo de concreto bumbo caixa objeto poesia cianureto decreto dura porrada contra o secreto Tudo está aqui… nitidamente são só duas cabeças transatlânticas com os pés na aldeia de olho à beira numa perspectiva romântica feito a brincadeira crua da infância”

E responde Maze:

“algumas vozes soaram na praça, meu caro mas sai caro pensar por nós próprios porque as ideias alastram desesperadas por ganhar vida e parece-me que isso convém pouco nos dias que correm e se nos dias que correm o acaso é caso que jamais a definir Abraço… Tamos aí Abraço… Tamos aí Abraço… Tamos Aí”

Os poemas deste livro não são letras de rap, mas devem ao rap sua vida e a beleza do encontro que simbolizam. O livro é exemplar na busca das solidariedades, sem esquecer as identidades e os contextos. É uma poesia intercultural.

Tenho muitas reservas sobre o conceito de lusofonia, não só pela ocultação que faz das muitas outras línguas que existem e são faladas nos territórios colonizados por Portugal, mas também pelo modo como o conceito tem sido instrumentalizado por políticos oportunistas, sempre pensando em negócios. Pois, se houvesse uma lusofonia, seria na lusofonia do Maze e do Terra que eu apostaria: a lusofonia dos jovens, dos artistas, dos povos inconformados por viverem em sociedades capitalistas, racistas e sexistas — em suma, sociedades injustas. A bandeira do rap, içada ao alto, seria a lusofonia do abraço contra todas as xenofobias.

Prefácio ao livro Epidemiología crítica y la salud de los pueblos, de Jaime Breilh

Prefácio para a edição em espanhol – 2021: Apresento-lhes um dos livros mais brilhantes de epidemiologia que li nos últimos tempos. Há muitas razões para esta afirmação. Trata-se de uma obra de síntese, fruto de uma longa e brilhante trajetória científica, escrita por alguém que conhece profundamente o paradigma da ciência moderna sobre o qual se baseia a epidemiologia convencional.

Esse conhecimento permitiu-lhe alcançar as raízes desse saber e identificar seus pressupostos epistêmicos, ontológicos, culturais e políticos. A partir daí, foi capaz de realizar uma crítica radical e implacável às principais lacunas e limitações desse paradigma, além de propor uma poderosa alternativa, ancorada nas tradições da teoria crítica latino-americana, da qual é um de seus representantes mais destacados.

Ao ler Jaime Breilh, lembrei-me de uma frase do grande intelectual cubano Roberto Retamar, de quem tive o privilégio de ser amigo. Ele dizia que o bom intelectual oriundo do mundo colonizado pelos europeus — como o intelectual latino-americano, por exemplo — levava vantagem em relação ao intelectual proveniente do mundo colonizador. Enquanto este último conhece apenas a literatura e a cultura do colonizador, o intelectual latino-americano conhece tanto a cultura e a literatura do colonizador quanto a do colonizado. Jaime Breilh é um excelente exemplo do bom intelectual latino-americano, no sentido proposto por Retamar.

O que Retamar não disse — e eu acrescentaria — é que a contribuição desse intelectual vai muito além do contexto regional. Trata-se de uma contribuição válida para o mundo como um todo. Ao ler Breilh, compreende-se rapidamente o porquê dessa afirmação.

Passemos, brevemente, aos principais méritos deste estudo.

No plano epistemológico e teórico, este livro se insere e enriquece significativamente a tradição teórica frequentemente chamada de pós-colonial ou decolonial — que prefiro chamar de Epistemologias do Sul, para ressaltar tanto sua dimensão crítica quanto sua dimensão propositiva.

O estudo revela, com impressionante lucidez, não apenas o fracasso do paradigma dominante da epidemiologia, mas também a urgente necessidade de alternativas, as quais o autor identifica com clareza.

Entendo por epistemologias do sul os dispositivos que permitem identificar e validar conhecimentos nascidos das lutas sociais contra a exclusão e a discriminação causadas pelas três principais fontes de dominação da modernidade eurocêntrica: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. As epistemologias do sul não pretendem substituir o norte pelo sul, mas sim construir formas de conhecimento que reconheçam a diversidade epistêmica do mundo e promovam o diálogo entre esses saberes, de modo que todos se enriqueçam mutuamente e contribuam para fortalecer as lutas contra a injustiça social em suas múltiplas dimensões (socioeconômica, cultural, racial, sexual, histórica e geracional). A esse diálogo mutuamente transformador, chamo de ecologia de saberes. Por isso, não é possível alcançar justiça social sem justiça cognitiva. A ciência moderna é, evidentemente, uma forma válida de conhecimento — mas não é a única.

A contribuição mais relevante deste livro no campo epistemológico é a crítica elaborada à monocultura do conhecimento científico eurocêntrico que sustenta a epidemiologia convencional e suas consequências. Trata-se de uma crítica fundamentada em profundo conhecimento do paradigma científico dominante. Em conformidade com a tradição do pensamento crítico, essa crítica possui duas dimensões fundamentais: a epistemológica propriamente dita e a política.

O reducionismo positivista, que domina a ciência de matriz eurocêntrica, é analisado de forma exaustiva. No entanto, a veemência da crítica de Breilh provém de seu olhar radical sobre as consequências sociais, políticas e culturais desse reducionismo teórico e epistêmico. Escreve Breilh:

“Todos os meios básicos de reprodução social e a saúde dos povos estão nas mãos de alguns poucos gigantes corporativos. Uma dominação exercida com mão de ferro sobre os recursos estratégicos e as mercadorias é concretizada por meio do acaparamento de terras e água, do controle das sementes por meio da proteção de patentes e, em geral, pelo controle oligopolista do sistema alimentar e pela imposição de uma dieta neoliberal. Por trás da massiva indução de comportamentos não saudáveis, promovida por grandes empresas junto aos consumidores, está a formação de enormes corporações transnacionais. Trata-se de sistemas de saúde submetidos a uma lógica comercial e oportunista, que opera tanto em espaços públicos quanto privados, sob um modelo curativo biologicista.”

Entre muitas outras contribuições, este livro enriquece os debates científicos e políticos do nosso tempo em três campos fundamentais, suscitando três questões decisivas.

A primeira e mais relevante delas é: a epidemiologia crítica tem como objetivo propor uma nova ciência ou uma ecologia de conhecimentos e saberes? A crítica radical que se faz ao reducionismo positivista pode levar à impressão de que Breilh aspira a um novo modelo de ciência, não reducionista. Essa é a tradição do pensamento crítico de matriz eurocêntrica. Não devemos esquecer que, no início do século XX, os melhores cientistas (inclusive Albert Einstein) e filósofos da ciência buscavam construir um conhecimento transdisciplinar e unificado.

Essa, no entanto, não é a proposta da epidemiologia crítica apresentada neste livro. Breilh sabe que a ciência, enquanto produção de conhecimento separado das práticas sociais, possui limites intrínsecos, derivados do seguinte dilema: a ciência só pode responder a perguntas formuladas cientificamente. No entanto, há muitas perguntas cruciais que não podem ser formuladas nesses termos. Por exemplo: o que é a felicidade? Nossos ancestrais estão conosco? Qual é o sentido da vida ou o sentido de fazer ciência?

Na verdade, essa última pergunta foi formulada por um grande físico teórico, Karl von Weizsäcker, para ilustrar os limites da ciência.

O objetivo humano — coletivo e individual — que orienta a pesquisa de Breilh é o bem viver, um conceito que provém das filosofias práticas dos povos indígenas andinos. O bem viver não pode ser captado pela ciência, devido aos pressupostos filosóficos ocidentais que a sustentam.

É por isso que Breilh afirma:

“A epidemiologia, como todo trabalho científico envolvido na defesa de um modo de vida saudável e da saúde, deve abordar seus objetivos com valentia e mente aberta, assumindo também o conhecimento e a sabedoria dos nossos povos como componente vital da pesquisa e da ação.”

Ou seja, a epidemiologia crítica que Breilh defende só pode ser construída com base numa ecologia de saberes, conceito que proponho para designar o diálogo mutuamente transformador entre diferentes formas de conhecimento.

Por essa razão, a proposta de Breilh rompe com o pensamento crítico eurocêntrico e propõe um saber que denomino conhecimento pós-abisal, um saber fundamentado nas epistemologias do Sul.

Por que “pós-abisal”?

Inspirado por Franz Fanon, defendo que o pensamento eurocêntrico — inclusive o pensamento crítico — é um pensamento abissal (desenvolvido mais profundamente em O fim do império cognitivo, Madrid, Trotta, 2019). Esse pensamento estabelece e, ao mesmo tempo, oculta uma diferença radical entre duas realidades: aquela que considera existente e relevante, e aquela cuja existência não reconhece ou, se a reconhece, a considera irrelevante por ser radicalmente inferior ou até perigosa.

Fanon fala da “zona do ser” e da “zona do não-ser”. Eu me refiro à sociabilidade metropolitana (dos seres plenamente humanos) e à sociabilidade colonial (dos seres sub-humanos, dos corpos e populações racializadas ou sexualizadas). Essa distinção evoca a continuidade do projeto colonial, mesmo após a independência política das colônias europeias. Com a independência, uma forma específica de colonialismo chegou ao fim — o colonialismo histórico, baseado na ocupação territorial por uma potência estrangeira. No entanto, ele persistiu sob muitas outras formas: racismo, expulsão de territórios ancestrais, supressão cultural, aculturação ou assimilação (que sempre significou desculturação), xenofobia, entre outras.

Todas essas formas compartilham um elemento central: a radicalidade da diferença, que se traduz na inferioridade qualitativa da sociabilidade colonial em relação à metropolitana. As populações situadas do outro lado da linha abissal, no lado colonial, são percebidas como radicalmente inferiores e, portanto, considerados inferiores também são seus modos de vida, suas culturas, seus saberes, suas religiões, seus corpos, seus gostos, suas formas de vestir, comer, falar, bem como suas emoções e sentimentos. Em suma, para a epistemologia eurocêntrica, são seres ontologicamente degradados — e, como tais, tratá-los como iguais seria, dentro dessa lógica, um erro político grave.

O presente livro demonstra, de forma contundente, que a epidemiologia dominante está atravessada por essa linha abissal, que separa o mundo ocidental eurocêntrico (sociabilidade metropolitana) do mundo indígena (sociabilidade colonial). A partir dessa divisão, tudo aquilo que se desvia ou diverge da cultura eurocêntrica que sustenta o pensamento abissal é ignorado ou suprimido.

O pensamento abissal baseia-se em pressupostos monoculturais e, por isso, exclui no mesmo ato em que se propõe a incluir. O monoculturalismo da epidemiologia eurocêntrica transforma em problema individual de saúde tudo aquilo que não compreende ou que não se encaixa no seu radar de inteligibilidade — um radar que, segundo suas próprias premissas, enxerga tudo o que é digno de ver, e considera inválido tudo o que não for por ele validado.

Na verdade, o que é ignorado ou suprimido pela epidemiologia que denomino abissal são os modos de vida não capitalistas, não colonialistas e não patriarcais. Os modos de vida próprios de camponeses, povos indígenas e afrodescendentes estão mais próximos da proposta de bem viver defendida por Breilh do que os modos de vida considerados “naturais” ou relevantes pela epidemiologia abissal.

É evidente que esses outros modos de ser, viver e conhecer também têm suas limitações, como as feministas demonstraram de maneira eloquente. Mas é justamente por isso que propomos as ecologias de saberes. Elas promovem a transformação não apenas do conhecimento eurocêntrico, mas também dos saberes do Sul epistêmico (e não do Sul geográfico, onde o pensamento abissal também predomina).

A separação e a incomunicabilidade entre esses dois modos de viver são reveladas de forma magistral neste livro. A denúncia da linha abissal só é possível porque Breilh se fundamenta em uma epistemologia que desafia de forma radical o monopólio eurocêntrico da visão e da avaliação. Ele mostra que esse monopólio opera por meio do que chamo de sociologia das ausências: a produção da inexistência de tudo o que não se enquadra na verdade monocultural. No plano epistemológico, a sociologia das ausências constitui um epistemicídio, termo que utilizo para designar a negação e destruição de outros conhecimentos.

Ao denunciar a sociologia das ausências, Breilh revela, no próprio processo investigativo, tudo aquilo que é negado por essa perspectiva: um conjunto rico de experiências sociais, diversas culturalmente, formas de conhecer, ser e falar que atribuem novos significados existenciais, éticos e políticos à vida e à saúde, tanto individual quanto coletiva. Da sociologia das ausências, passa-se, assim, à sociologia das emergências. E o que emerge da negação eurocêntrica é um mundo profundamente diverso de experiências que possuem valor em si mesmas, mas que também podem contribuir para a construção de sociedades mais inclusivas, justas e solidárias.

A segunda questão crucial refere-se ao campo de uma epidemiologia pós-abissal. Como afirmei anteriormente, a ecologia de saberes exige uma investigação capaz de captar e valorizar conhecimentos e epistemologias não eurocêntricas. No entanto, isso não é suficiente. Como este livro demonstra de forma convincente, as epistemologias do Sul são epistemologias políticas — isto é, apontam para lutas anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais.

As epistemologias do Norte assentam-se sobre cinco monoculturas: a monocultura do conhecimento rigoroso (a ciência moderna); a monocultura das classificações sociais naturalizadas (homem/mulher, sociedade/natureza, branco/negro), que produzem e ocultam hierarquias brutais; a monocultura do tempo linear (o progresso); a monocultura das escalas (a primazia do global e do universal); e a monocultura da produtividade (a produtividade capitalista, definida dentro de um único ciclo de produção).

Portanto, a ecologia de saberes nunca atingirá plenamente seus objetivos se não estiver inserida numa luta teórica e política mais ampla, que inclua também outras ecologias. Neste livro, Breilh oferece indicações preciosas nesse sentido, sobretudo no brilhante capítulo 3.

Por fim, esta obra suscita uma terceira questão radical: a das metodologias. Não é possível avançar rumo a um conhecimento pós-abissal baseando-se em metodologias concebidas para sustentar o pensamento abissal. Breilh torna evidente que, por exemplo, a dicotomia entre metodologias quantitativas e qualitativas — embora relevante — não resolve o problema metodológico enfrentado por sua proposta de epidemiologia pós-abissal. Isso porque ambas compartilham os mesmos pressupostos: o de um conhecimento separado das práticas sociais, redutor e fragmentador da realidade.

Como analisar a dinâmica dialética de processos e movimentos contraditórios, constituídos por sistemas e subsistemas relativamente autônomos? Como identificar e validar os conhecimentos indígenas sem estar engajado nas lutas sociais desses povos?

No plano metodológico, este livro é igualmente inovador ao apontar para metodologias colaborativas de pesquisa, não extrativistas — metodologias que promovem o “estudo com”, em vez do “estudo sobre”; que reconhecem subjetividades, ao invés de criar meros objetos de estudo.

Esta é uma obra especializada, mas também um lúcido e profundo ensaio de análise crítica das sociedades contemporâneas. Ela abre caminhos para se pensar que a mesma lógica monocultural e colonialista da epidemiologia convencional dominante, aqui identificada no campo da saúde, também se manifesta — com variações — em outros campos, como a educação, a seguridade social, a cultura, a política, a economia, a religião. As fraturas e divisões que atravessam nossas sociedades encontram aqui pistas valiosas de investigação. Mas Breilh não se limita à denúncia: ele propõe alternativas que concebem a justiça cognitiva e a justiça histórica como dimensões fundacionais da justiça social.

Por meio de uma denúncia ancorada em conhecimentos sólidos e da formulação de alternativas com base na esperança, será possível construir sociedades interculturais, justas e solidárias. Não apenas nas relações entre seres humanos, mas também nas relações entre todos os seres vivos — humanos e não humanos.

Por todas essas razões, recomendo veementemente a leitura e a ampla divulgação deste livro fundamental para enfrentar os tempos que virão e os desafios que trazem consigo.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com [email protected].

✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

Rumo ao tri: Brasil 247 concorre ao Prêmio iBest 2025 e jornalistas da equipe também disputam categorias

Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista:

Cortes 247

Carregando anúncios...
Carregando anúncios...