A memória na luta contra o fascismo
"Quando um determinado grupo insiste em convalidar a negação da humanidade é porque seus integrantes já perderam qualquer resquício de humanidade", diz Folena
O desfile do dia da vitória, no 9 de maio organizado pelos Russos em Moscou, foi uma grande demonstração para o mundo verdadeiramente civilizado (que foi e segue sendo vítima das mazelas decorrentes do colonialismo e do imperialismo) de como manter viva a memória como instrumento fundamental no enfrentamento ao fascismo de ontem e de hoje.
Assim, foi de grande relevância a participação do presidente Lula e do presidente do Congresso Nacional naquele evento, pois, na atualidade, um dos enfrentamentos mais necessários a serem feitos no Brasil é contra o fascismo, o latifúndio e o imperialismo, que desde a fundação da República mantêm o país atrelado ao atraso e impedem que a classe trabalhadora e o povo em geral alcancem melhores condições de vida.
Esse triplo arranjo já tinha sido denunciado no manifesto da Aliança Nacional Libertadora, de 1935, na Carta Testamento de Vargas, de 1954, e no Discurso da Central do Brasil do presidente João Goulart, em meados de março de 1964.
Aliás, estas mesmas forças gestaram e apoiaram o golpe que produziu 21 anos de ditadura (1964-1985); controlaram os cordões que conduziram ao impeachment indevido de Dilma Rousseff, em 2016; levaram à prisão do próprio Presidente Lula, encarcerado ilegalmente por 581 dias (2018-2019); possibilitaram a chegada de um fascista declarado ao poder (em 2019); e fomentaram e financiaram os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
Tendo em vista essa influência longa e nefasta, o país precisa de ações educativas de preservação da memória nacional; um passo importante nessa caminhada seria o tombamento das edificações que serviram de centros de prisões e torturas na última ditadura no solo brasileiro, no quadro geral de medidas necessárias ao enfrentamento ao fascismo no país, para que as gerações presentes e futuras conheçam o que se passou, a fim de que, no futuro, deixemos de repetir os graves erros que nos assolam como fantasmas até hoje.
O prédio do Arquivo Nacional (antiga Casa da Moeda), no Rio de Janeiro, na Praça da República, perto da Central do Brasil, é um belíssimo palácio, situado em local de fácil acesso para todos, que poderia ser transformado no Museu da Memória Nacional, onde as pessoa tomariam conhecimento da extensa memória disponível nos arquivos do país.
Se o governo do presidente Lula adotasse essa ideia, de conferir uma destinação mais significativa ao prédio cuja beleza é hoje inacessível à maioria, daria um grande exemplo e permitiria à classe trabalhadora conhecer a história das lutas travadas pelo povo brasileiro na formação do país.
O debate sobre a preservação da memória ou a prevalência do esquecimento pode ser sintetizado nas palavras de Walter Benjamin, que afirmou que “os mortos têm direito sobre nós, uma vez que, do ponto de vista deles, somos as futuras gerações”, em contraposição ao pensamento de Max Horkheimer, que defende que “os mortos estão mortos e não podem ser despertados”.
A jurisprudência construída no Supremo Tribunal Federal tem se encaminhado para o respaldo ao direito à memória e à vedação de qualquer forma de censura, como ressaltado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815, quando decidiu que:
“A Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. … O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. … Biografia é história. … Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. O risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se cortando liberdades conquistadas.”No julgamento do Recurso Extraordinário número 1.010.606 fixou-se a seguinte tese, com repercussão geral: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível” (tema 786).Nesse passo, considero importante salientar que o STF, no julgamento realizado em 16/03/2017, na Reclamação 11.949/RJ, analisando a negativa do Superior Tribunal Militar de tornar público o conteúdo dos julgamentos secretos ocorridos durante a ditadura militar, manifestou que: “o direito à informação, a busca pelo conhecimento da verdade sobre a sua história, sobre os fatos ocorridos em período grave contrário à democracia, integra o patrimônio jurídico de todo cidadão, constituindo dever do Estado assegurar os meios para o seu exercício”.
Ainda que envolvam delitos praticados, e diante da repercussão política e social dos acontecimentos, é direito da sociedade saber quem os praticou e como os praticou, a fim de se evitar posicionamentos rejeitados pela Constituição e contrários à democracia, como a defesa da tortura e de torturadores, a apologia ao estupro e a violações aos direitos humanos; ou comentários que buscam naturalizar o abuso e o trabalho infantil, além da prática odiosa do racismo.
Sendo assim, não se pode jogar ao esquecimento nem impedir a divulgação dos envolvidos nos delitos de grande repercussão, relativos a violações dos direitos humanos, aos quais deve ser dado amplo conhecimento, para que sejam repelidos pela sociedade, uma vez que “no estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável”, como decidiu o Plenário do STF, no julgamento do HC 82.424.
A opção pelo esquecimento das graves violações aos direitos humanos, ocorridas durante as ditaduras no país (1937-1945 e 1964-1985), atua como alimento do ódio, que incentiva o retorno despudorado das mesmas práticas destrutivas, como observamos nos dias atuais, mediante os ataques sistemáticos aos índios, aos negros (ações policiais em comunidades faveladas), à população LGBTQIA+, às mulheres e às crianças; comportamentos que possibilitam o genocídio e a violência, que desrespeitam a pluralidade e nos afastam cada vez mais de uma ordem verdadeiramente democrática.
Quando um determinado grupo insiste em convalidar a negação da humanidade do outro, do alter, do supostamente diferente, de modo a justificar seu aniquilamento, é porque seus integrantes já perderam qualquer resquício de humanidade e defendem o retorno à barbárie. E na barbárie não existe a possibilidade de se construir efetiva democracia.
Por fim, diante da evolução da jurisprudência do STF, no reconhecimento da memória, é necessário que a Corte reveja a sua decisão no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental número 153, que manteve a lei de anistia (lei 6.683/1979), que representa o indevido esquecimento da memória nacional sobre os graves delitos contra os direitos humanos praticados na última ditadura (1964-1985).
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